Neste décimo quinto episódio da série de “Perguntas e Respostas” do Brassagem Forte, Henrique Boaventura assume o microfone sozinho, mas não exatamente em solidão. Ele brinca que está acompanhado pela “companhia imaginária” de personagens populares, que emprestam voz às dúvidas enviadas pelos apoiadores, apoiadoras e pela galera do Instagram. É a comunidade que guia o conteúdo!
Então bora conferir essas inquietações e os esforços do Henrique para sanar tudo?
O Brassagem Forte conta com a parceria da Hops Company, da Levteck, da EZbrew e da Cerveja Stannis.
A partir das questões enviadas pelos apoiadores e ouvintes do Brassagem, o episódio passeia por temas essenciais e, ao mesmo tempo, bem específicos: como garantir turbidez estável e corpo em NEIPA, como conduzir priming em cervejas ácidas, o que realmente importa no resfriamento do mosto, por que quase não vemos boas belgas e inglesas no mercado brasileiro, o impacto (real) da temperatura de lavagem dos grãos, o passo a passo de uma smooth sour, a relação entre FG e corpo, o tempo ideal de fermentação, a organização do espaço de brassagem e o papel do malte Carapils. É praticamente um “ajuste fino geral” do processo.
Turbidez e corpo em NEIPA: a tríade que sustenta a “velinha”
A conversa começa com a pergunta de Carlos Rogério sobre New England IPA: como manter a turbidez típica do estilo e, ao mesmo tempo, garantir maior corpo? Henrique lembra que o tema já apareceu em um antigo Brassando com Estilo sobre NEIPA, gravado antes mesmo do estilo entrar no BJCP, mas aproveita para condensar a lógica em uma ideia simples: turbidez estável é resultado da interação entre proteínas, polissacarídeos e compostos de lúpulo. É essa tríade que transforma a cerveja naquele líquido opaco, quase “parecendo uma vela”.
Para entregar proteínas e beta-glucanos em quantidade suficiente, o grist precisa de trigo, aveia e, se possível, malte chitted, uma cevada pouco modificada, com maior teor de proteína. A faixa de 20% a 30% do grist composta por esses cereais costuma ser um bom ponto de partida para garantir turbidez persistente e sensação de corpo. Não é só uma questão de “jogar floco de aveia” na receita; é pensar no grist como uma base construída para manter esses compostos em suspensão.
A água entra como coadjuvante de luxo. Cloretos entre 150 e 250 ppm aumentam a percepção de maciez e corpo, enquanto sulfatos abaixo de 100 ppm evitam que a cerveja fique seca demais e com amargor agressivo. O objetivo é uma NEIPA suculenta, cheia, com amargor arredondado. Na mostura, Henrique recomenda abandonar o excesso de rampas e mirar direto em uma faixa de 66 a 68 °C, preservando proteínas e beta-glucanos. Por fim, a escolha da levedura fecha o pacote: cepas pouco floculantes, com boa produção de glicerol – muitas inglesas e algumas belgas – ajudam a manter a turbidez, reforçar o corpo e entregar aquela textura cremosa típica das hazies. O dry hopping pesado, além do aroma intenso, acrescenta polifenóis que se combinam com proteínas e polissacarídeos, estabilizando a turbidez. No fim, não é um truque isolado: é um sistema inteiro pensado para manter a “nuvem” no copo.
Priming em cervejas ácidas: confiar no que sobrou ou inocular de novo?
Quando o assunto muda para cervejas ácidas, a pergunta de Maurício Ferreira mira na etapa de priming: em cervejas selvagens ou ácidas de longa fermentação, dá para confiar só nos micro-organismos já presentes ou é melhor inocular uma levedura específica para a refermentação em garrafa? A resposta curta de Henrique é clara: o caminho mais correto é sempre fazer um inóculo de levedura fresca para a refermentação.
Em cervejas selvagens, com múltiplos micro-organismos, ou em fermentações muito longas, a combinação de álcool, pH baixo e depleção de nutrientes deixa a levedura remanescente fragilizada. Ela até pode estar viva, mas geralmente sem força para encarar um novo desafio de fermentação com segurança. Por isso, faz mais sentido inocular uma nova levedura e, de preferência, prepará-la para o ambiente ácido em que ela vai trabalhar. É aqui que entra o acid shock, ou choque ácido: a levedura é aclimatada previamente a um mosto ou solução com pH próximo ao da cerveja, para não “apanhar” de surpresa quando entrar na garrafa. Esse processo foi destrinchado pelo Brassagem Forte em episódios dedicados à envase de cervejas ácidas e ao próprio acid shock.
Em quick sours, como kettle sours bem conduzidas, o cenário costuma ser menos crítico: a fermentação é mais curta, a levedura não passou tanto tempo sob estresse e, em muitos casos, ela consegue tranquilamente fermentar o açúcar do priming. Ainda assim, a lógica geral se mantém: quanto mais longa e complexa a fermentação, mais faz sentido trazer uma levedura fresca e preparada para o ambiente ácido.
Resfriamento do mosto: o que realmente importa acima de 80 °C
A dúvida de William sobre resfriamento é muito prática: ele resfria o mosto com serpentina e água corrente por cerca de 20 minutos, transfere para o fermentador e só inocula a levedura no dia seguinte. Ao mesmo tempo, vê muita gente enfatizando a importância de resfriar rápido para evitar off-flavors. Onde está o ponto de equilíbrio?
Henrique reforça que resfriar rapidamente é, sim, benéfico, mas não necessariamente até a temperatura final de inoculação com o chiller. O ponto crítico está na faixa acima de 80 °C. É nesse intervalo que três coisas importantes acontecem: a coagulação de proteínas, a continuidade da isomerização do lúpulo e a conversão de SMM em DMS sem a mesma eficiência de expulsão pela fervura.
O choque térmico inicial, logo ao sair da fervura, favorece a coagulação de proteínas e ajuda a construir estabilidade coloidal, diminuindo o risco de envelhecimento precoce e sabores “cansados”. Ao mesmo tempo, manter o mosto muito tempo acima de 80 °C prolonga a isomerização dos alfa-ácidos em iso-alfa-ácidos, o que pode elevar o IBU final além do planejado, trazendo um amargor indesejado. Por isso, faz sentido configurar softwares como Brewfather ou Beersmith para considerar o tempo de resfriamento acima de 80 °C, aproximando o cálculo de IBU da realidade.
A terceira peça é o DMS. Enquanto a temperatura está acima de 80 °C, a S-metilmetionina continua se degradando em DMS. Durante a fervura, o DMS é expulso pelos vapores; sem fervura e sem movimento vigoroso, ele tende a ficar dissolvido no mosto. Isso é especialmente relevante quando se usa malte Pilsen, que tem maior potencial de formação de DMS. A estratégia prática de Henrique é resfriar com chiller até algo em torno de 30–35 °C, transferir para o fermentador e concluir o resfriamento na geladeira até a temperatura de inoculação, sempre com sanitização muito bem cuidada. O essencial é descer rapidamente daqueles 100 °C para bem abaixo de 80 °C; o resto pode ser conduzido com calma e controle de higiene.
Belgas e inglesas no Brasil: um problema cultural, não técnico
A pergunta de Alexandre Souza muda o foco para o mercado: por que é tão difícil achar bons exemplares de escolas belga – especialmente monásticas – e inglesa, enquanto a escola alemã parece mais bem representada nas prateleiras brasileiras? Henrique assume que está falando a partir de opinião, não de pesquisa estruturada, mas a reflexão é valiosa.
Ele descreve uma espécie de dilema de ovo e galinha. As cervejarias dizem que não produzem esses estilos porque ninguém consome. Os consumidores, por sua vez, alegam que não consomem porque quase não encontram essas cervejas disponíveis. No meio disso, há uma força cultural muito forte empurrando o consumo para estilos lupulados, especialmente IPAs em suas variações mais intensas. Isso não é necessariamente ruim, mas cria uma sombra grande sobre estilos centrados em levedura, como as belgas, ou na delicadeza do malte, como as inglesas.
A saída que ele enxerga passa por um movimento de dentro para fora. Quando cervejeiros e cervejeiras caseiras começam a produzir belgas e inglesas boas em casa, a referência sensorial se espalha, o interesse cresce e surge uma demanda mais clara. Projetos como o BJCP Scored do próprio Brassagem Forte, além do incentivo de criadores como Jamal (Beer School) e Leandro (Cerveja Fácil), ajudam a difundir esses estilos menos óbvios. E, do ponto de vista técnico, não falta acesso a leveduras belgas e inglesas no Brasil. O gargalo não está no insumo, mas no apetite do consumidor e na decisão comercial das cervejarias.
Lavagem dos grãos em temperatura ambiente: mito x realidade
Quando Marcelo Arruda pergunta se lavar os grãos com água em temperatura ambiente gera off-flavor ou apenas pode reduzir um pouco a eficiência, Henrique usa o tema para desmontar um dos “dogmas silenciosos” da brassagem: a ideia de que água quente sempre extrai mais açúcar porque “dissolve melhor”.
A questão é que, na prática, não estamos dissolvendo açúcar sólido em água como em uma xícara de café, e sim trabalhando com açúcares já solubilizados ou formados na mostura. A solubilidade da maltose, por exemplo, é alta o suficiente na temperatura de mostura para não ser um gargalo real na grande maioria das receitas; seria necessário trabalhar com densidades absurdamente altas para esbarrar nesse limite. Ou seja, a temperatura da água de lavagem não está determinando quanto açúcar “cabe” na solução.
Experimentos como os do Brülosophy, usando água de lavagem em torno de 16 °C, mostraram impactos muito pequenos na eficiência e nenhuma diferença sensorial relevante. Em alguns cenários específicos, se a mostura foi mal conduzida, água mais quente pode ativar um pouco mais as enzimas e converter açúcares complexos em simples, ganhando alguns pontos de densidade inicial. Mas isso tem a ver com atividade enzimática, não com solubilidade em si. Em resumo: lavar os grãos com água em temperatura ambiente não traz risco de off-flavor e, na maior parte dos casos, a perda de eficiência é tão pequena que não justifica pânico.
Smooth sour: milkshake alcoólico, processo sério
A pergunta anônima sobre como fazer uma Smooth Sour abre espaço para um mini “Telecurso 2000” cervejeiro. Henrique não perde a chance de reforçar a opinião pessoal de que “não é cerveja”, mas encara o desafio de explicar o processo com seriedade. A estrutura básica desse tipo de bebida passa por quatro pilares: base alcoólica forte e bem fermentável, muita lactose, acidificação com lactobacilos e uma carga brutal de fruta.
A base lembra uma Hazy IPA sem lúpulo, com malte Pilsen, aveia e trigo, mosturados em uma faixa mais baixa, em torno de 63–64 °C, para gerar muitos açúcares fermentescíveis. A ideia é chegar perto de 10% de álcool antes de diluir esse mosto com fruta. A levedura vai trabalhar em um ambiente difícil – ácido e concentrado – por isso nutrientes e oxigenação generosa são fundamentais.
Já a lactose entra pesada, podendo representar algo entre 20% e 30% do grist. Por não ser fermentável pela Saccharomyces, ela deixa dulçor residual, aumenta o corpo e contribui para uma textura cremosa. A acidificação é feita com lactobacilos até um pH na casa de 3,1 a 3,3, e só depois disso a fermentação alcoólica principal é conduzida com uma levedura neutra, como US-05 ou Nottingham, novamente com foco em alta atenuação num meio hostil.
A fruta é adicionada em grande volume, sendo que 30% a 40% do volume total em polpa não é exagero. Acréscimo sempre feito no barril e, de preferência, com ela congelada, tanto para reduzir sujeira quanto para diminuir o risco de contaminação. O tipo de fruta precisa ser escolhido com cuidado: sabores intensos e textura contam muito mais do que a beleza do rótulo. Banana, goiaba, cupuaçu, açaí, framboesa, amora e mirtilo são exemplos de boas candidatas; frutas muito neutras, como o morango, tendem a sumir no meio da lactose e da acidez. O equilíbrio de pH também entra na equação: se a fruta for muito ácida, convém acidificar um pouco menos com lactobacilos; se for menos ácida, dá para ir mais fundo na acidificação inicial.
E um ponto crucial: envase só em barril, nada de garrafa ou lata. A combinação de sólidos, açúcares residuais e fruta fresca torna a chance de refermentação descontrolada e “bombas de mão” alta demais. Na prática, o processo é conceitualmente simples, mas exige rigor técnico.
FG e corpo: muito além da densidade final
Na pergunta de Marcos Kimick sobre a relação entre FG e corpo, o exemplo de uma Ordinary Bitter e uma Belgian Tripel ajuda a visualizar a questão. Em tese, FG mais alta significa mais açúcares residuais, mais sensação de corpo e dulçor, enquanto FG mais baixa aponta para uma cerveja mais seca. Isso é verdade em linhas gerais, mas está longe de ser o quadro completo.
Henrique lembra que o corpo de uma cerveja também é determinado por beta-glucanos e proteínas provenientes de cereais como trigo, aveia e centeio, que aumentam viscosidade e sensação de boca sem necessariamente elevar a densidade final medida. Maltodextrina é outro recurso que traz cremosidade e corpo, com pouquíssima fermentação e pouco impacto direto na FG. Há ainda o glicerol produzido por algumas cepas de levedura, como certas kveiks, belgas e inglesas, que contribui bastante para a sensação de corpo.
O perfil de água também pesa: cloretos em níveis mais altos aumentam a percepção de corpo e maciez, enquanto sulfatos altos puxam a sensação para o lado seco e amargo. Até a carbonatação entra no jogo: cervejas menos carbonatadas parecem mais cheias na boca; carbonatações altas podem “afinar” a percepção de corpo. Por isso, mirar apenas em uma FG alta para construir corpo é uma visão limitada. Corpo é resultado de decisões integradas em grist, água, levedura e carbonatação.
Quando encerrar a fermentação: estabilidade, não calendário
Luca Silva traz uma dúvida recorrente de quem usa softwares como Brewfather: se a densidade já estabilizou, faz sentido deixar mais alguns dias em fermentação ou já se pode partir para o cold crash? E por que tantas receitas indicam fermentações longas, de 10 a 20 dias, a 18 °C?
A resposta de Henrique volta ao básico: se a fermentação foi saudável – pitch adequado, controle de temperatura, levedura viável e vital – e a densidade final está estável por dois ou três dias consecutivos, já é seguro partir para o cold crash. Em fermentações problemáticas, com produção mais alta de acetaldeído, diacetil ou compostos de enxofre, pode ser interessante estender o tempo para que a própria levedura reabsorva esses off-flavors. Mas, em geral, vale mais pena investir em uma fermentação bem planejada do que usar tempo extra como muleta para corrigir erros.
Sobre os tempos mais longos sugeridos em receitas prontas do Brewfather, Henrique faz uma leitura pragmática: os desenvolvedores provavelmente tentam criar um processo que funcione tanto para quem fermenta com controle rigoroso quanto para quem faz “no olho”. O prazo mais longo é uma margem de segurança que evita problemas para o usuário menos cuidadoso, mas isso não significa que todo mundo precise seguir aquela duração ao pé da letra.
Organização do espaço de brassagem e filtração na cervejaria
A Flow Brewing levanta uma questão bem pé no chão – literalmente: como não molhar toda a casa durante a brassagem? Henrique reconhece o sofrimento e sugere soluções simples, mas eficientes. Ter uma torneira próxima da panela e uma bacia ou pia funda para receber peças, mangueiras e o próprio saco ou cesto de grãos já reduz bastante o pinga-pinga fora de controle. Levantar o bag sobre essa bacia, em vez de deixá-lo pingando livremente sobre o chão, é uma pequena mudança com grande impacto. Tapetes emborrachados também funcionam bem: se sujou, é só lavar; se estragou, é barato substituir.
Ele aproveita para ampliar a conversa para o contexto profissional, falando de filtração em cervejarias. Filtros de disco, filtros de terra diatomácea e de membrana entregam brilho e estabilidade, mas trazem complexidade, custo e risco de entupimento, sobretudo em operações de menor escala. Soluções mais recentes, como filtros inline montados diretamente na linha de envase, capazes de reter partículas em torno de 5 micras com menor custo e complexidade, aparecem como alternativas interessantes para microcervejarias que querem melhorar brilho e shelf life sem investir em sistemas de filtração mais pesados.
Carapils: malte subutilizado ou pouco compreendido?
A última pergunta técnica, enviada pela Cervejaria Trutas Beer, mira o malte Carapils e o fato de poucas receitas o utilizarem. Henrique começa explicando do que se trata: um malte especial claro, sem poder diastático, com cor na faixa de 1,5 a 3 Lovibond, que contribui para retenção de espuma, corpo e um leve toque de dulçor ou caramelo claro, podendo ser usado até cerca de 10% do grist.
Na percepção dele, o motivo para o subuso do Carapils passa pelos dois extremos de comportamento dos cervejeiros caseiros. De um lado, está quem empilha malte demais, monta receitas com uma dezena de maltes especiais sem entender exatamente a função de cada um. Do outro, está quem praticamente não sai da combinação básica de malte base com um ou outro especial mais óbvio. Em ambos os casos, falta o “caminho do meio”, que é tratar cada malte especial como ferramenta de precisão, e não como enfeite.
Henrique lembra que, em brassagem caseira, raramente o problema principal é espuma; quando há falhas sérias na formação ou retenção, quase sempre a causa é de processo – descanso proteico longo demais, uso exagerado de milho ou outros adjuntos que prejudicam espuma, problemas de limpeza, gordura, etc. Por isso, muitos cervejeiros acabam preferindo recorrer a trigo, aveia e outros cereais, e o Carapils acaba sobrando na prateleira. Ainda assim, ele enxerga um espaço particularmente interessante para o uso desse malte em cervejas sem álcool, em que corpo e espuma tendem a ser mais frágeis. Aí, sim, um ajuste fino com Carapils pode fazer diferença.
Conclusão: um grande ajuste de parafusos no processo cervejeiro
Henrique não traz fórmulas mágicas, mas mexe com vários “parafusos finos” do processo cervejeiro. No fundo, o episódio reforça uma mesma mensagem: fazer cerveja de forma consistente não é decorar receitas, é entender causas e efeitos. Água, malte, lúpulo, levedura, temperatura, tempo, pH, clarificação, envase… Tudo isso é ferramenta nas mãos de quem conhece os porquês de cada escolha. E é exatamente essa conversa contínua com apoiadores, apoiadoras e ouvintes que mantém o Brassagem Forte como um ponto de referência para quem quer ir além da receita pronta e realmente dominar o próprio processo.

