Um guia técnico completo para entender a Real Ale
Este episódio reserva uma nova incursão pela técnica e pela história de um estilo de cervejas, com todos os seus meandros explorados e explicados por Henrique Boaventura e ilustres convidados. Desta vez, o Brassagem Forte recebe João Alberto Kolling, Headbrewer da Schouskjelleren e Nedre Foss Gård em Oslo, na Noruega.
É mais uma entrega de qualidade e que conta com a parceria da Hops Company, da Levteck, da EZbrew e da Cerveja Stannis.
O que é uma Cask Ale (Real Ale)?
Cask Ale, também chamada de Real Ale, é o nome dado à cerveja tradicional britânica servida diretamente de um cask, do “casco”, recipiente em que a cerveja é acondicionada, termina de fermentar e é servida.
Algumas características centrais da Cask Ale:
- Sem CO₂ forçado: não há carbonatação artificial. A carbonatação vem de fermentação residual ou de priming dentro do casco.
- Sem pasteurização: o produto é vivo, extremamente perecível.
- Sem filtração forçada: a clarificação é feita por decantação (floculação da levedura) e uso de clarificantes como Isinglass.
- Serviço direto do recipiente: o mesmo casco em que a cerveja termina de fermentar é o casco de serviço, seja na gravidade, seja via beer engine.
É uma cerveja que foge completamente da lógica moderna de “latinha brilhando, bem gelada, super limpa e com CO₂ alto”. É outro paradigma de consumo.
O casco (cask): do “casco de vidro” ao barril britânico
A palavra “cask”, como vimos, remete ao recipiente, o casco. É a mesma ideia dos velhos cascos de vidro retornáveis de refrigerante e cerveja: você devolve o recipiente, ele volta pra linha, é recarregado e segue o ciclo. No contexto de Cask Ale:
- O cask é o barril que:
- recebe a cerveja ainda com extrato residual;
- pode receber priming e clarificante;
- serve como tanque final de acondicionamento;
- vira “torneira” do pub.
Historicamente, esses “cascos” eram de madeira, fabricados por tanoeiros. Hoje, a maioria é de aço inox, alumínio e até plástico alimentício, com o mesmo formato “bojudo” característico. Essa “barriguinha” é funcional: como o casco tradicionalmente fica deitado, a pança serve para concentrar levedura e sólidos abaixo da altura da torneira, minimizando a turvação no serviço.
Carbonatação natural e papel da levedura inglesa
Na Cask Ale, a carbonatação vem de:
- Fermentação residual dentro do cask (quando a cerveja é transferida com 0,5–1,0 °P ainda por fermentar), e/ou
- Priming: adição de açúcar antes de fechar o casco, prática que o João destaca como o “toque do chefe”.
E a levedura inglesa é peça-chave:
- Cepas inglesas (S-04 e afins) são:
- rápidas: fermentam o mosto em poucos dias;
- altamente floculantes: sedimentam em blocos muito densos;
- Essa floculação não é “por acaso”: é resultado de décadas de seleção em sistemas como Yorkshire Squares e Burton Union, justamente porque a cerveja precisava:
- terminar de fermentar no cask;
- clarificar rapidamente no cellar;
- apresentar-se visualmente límpida no copo.
A lógica é simples: a cerveja chega “quase pronta” ao pub, e o acabamento (fermentação final, clarificação e serviço) acontece no casco.
Cellar e o papel do Cellar Worker
No Reino Unido, a qualidade da Cask Ale depende fortemente do cellar e de quem cuida dele: o cellar worker.
O cellar, traduzível mas não exatamente a mesma coisa que um porão ou uma adega, é a área levemente mais fresca do bar (tradicionalmente por volta de 10–11 °C), responsável por:
- Receber os casks vindos da cervejaria;
- Deixar os barris em repouso para decantação;
Já o cellar worker fica responsável por:
- Avaliar:
- nível de clarificação;
- nível de carbonatação;
- sabor e aroma;
- Decidir:
- quando sangrar pressão;
- quando espetar (instalar a torneira);
- quando o cask está no pico de consumo.
Um mesmo lote enviado para dois pubs diferentes pode ter desempenhos sensorialmente muito distintos, justamente por diferenças na gestão de cellar (temperatura, tempo de repouso, sangria, giro de estoque, uso de dry hopping e clarificantes no bar etc.).
Spiles, bunghole e controle de pressão
Na parte superior do cask há o bunghole, vedado por um bunghole de plástico ou madeira, onde são inseridos os spiles (no episódio chamados de “spike duro” e “spike poroso”):
- Spile duro (hard spile)
- Usado para aliviar pressão rapidamente.
- Após sangrar o excesso de CO₂, ele pode ser martelado para fechar o cask.
- Spile poroso (soft spile)
- Usado durante o serviço.
- É poroso o suficiente para permitir a entrada de ar conforme a beer engine puxa a cerveja, evitando a criação de vácuo.
Consequência inevitável:
- Entra oxigênio → a cerveja começa a oxidar rapidamente.
- Por isso, a recomendação clássica é: consumir o cask em até 2–3 dias após espetar.
- Depois disso, a cerveja tende a ficar:
- opaca / embaçada;
- com sabores de oxidação e envelhecimento acelerados;
- possivelmente azeda, a depender da higiene do pub.
Clarificação com Isinglass, e o alerta para veganos
Um elemento clássico da Cask Ale tradicional é o uso de Isinglass, ou ictiocola, como clarificante:
- Isinglass é um fining de origem animal, feito a partir do pó da bexiga natatória do esturjão.
- É adicionado ao cask (muitas vezes junto com dry hop em flor) para acelerar a sedimentação de leveduras e partículas.
É extremamente eficiente, mas não é adequado para veganos, ponto importante para comunicação em pubs e rótulos.
Tamanhos de cask: pin, firkin e kilderkin
Os casks tradicionais britânicos possuem nomes específicos e tamanhos típicos (em galões imperiais):
- Pin
- ~ 4,5 galões imperiais (~ 20 L)
- É o tamanho mais comum hoje, especialmente porque é mais fácil “secar” o cask em 2–3 dias.
- Firkin
- ~ 9 galões imperiais (~ 40 L)
- Kilderkin
- ~ 18 galões imperiais (~ 80 L)
A escolha do tamanho depende diretamente do giro do bar:
- Pubs com pouca rotatividade correm o risco de perder volume (cerveja oxidada após alguns dias).
- Pubs com grande rotatividade podem trabalhar com firkins ou até kilderkins.
Há uma perda “normal” de cerveja por decantação: cerca de 0,5 L por cask pequeno (pin), graças à pança que acumula os sólidos abaixo da torneira. É uma “perquinha”: perde-se volume, ganha-se qualidade no copo.
Serviço por gravidade vs. Beer Engine
Existem dois grandes modos de serviço de Cask Ale:
Serviço na gravidade
- O cask é colocado deitado, a torneira é marretada no chive (peça frontal do casco) e a cerveja sai por gravidade quando a torneira é aberta.
- É um serviço simples, direto, sem CO₂ e sem bomba.
Do ponto de vista técnico, funciona perfeitamente. Do ponto de vista estético e ritual, é bem mais simples.
Serviço na Beer Engine
A beer engine é uma bomba manual de pistão, similar às bombas de poço artesiano:
- Uma mangueira conecta a saída do cask à beer engine;
- Na ponteira há um pescoço de ganso com um difusor (sparkler);
- O difusor precisa ser mantido submerso na cerveja no copo para criar:
- o efeito cascata;
- uma espuma cremosa;
- a “ilusão” de maior carbonatação.
Por que muitos preferem a beer engine?
- Ritual visual poderoso: puxar a manivela, ver o líquido subir, o efeito cascata, a formação de espuma.
- Realça o charme histórico e estético da Cask Ale.
No Brasil, conseguir uma beer engine é caro e complicado (importação, frete, impostos), mas tecnicamente é o mesmo princípio de uma bomba manual: baixa pressão, sem CO₂ empurrando.
Cask Ale não é “cerveja choca”, é outro parâmetro de experiência
A reação típica de brasileiros ao provar Cask Ale na Inglaterra é acusar de que “tá choca”, “tá sem gás”, “tá quente”.
Tecnicamente, sim, ela tem menos CO₂ do que estamos acostumados em kegs modernos, e ela é servida menos fria (por volta de 10–13 °C). Mas isso é o cerne da proposta. A temperatura mais alta e a baixa carbonatação:
- destacam maltes como Maris Otter (biscoito, caramelo leve);
- realçam nuances de lúpulos ingleses (chá preto, terroso, herbal);
- valorizam ésteres e leve toque de acetaldeído ou diacetil (quando parte do perfil tradicional, não defeito grosseiro).
Não é uma “pior versão” da ale em keg; é uma experiência sensorial diferente, com outro equilíbrio de aromas, textura e temperatura.
Estilos que mais se beneficiam do cask
Historicamente, os estilos mais associados a Cask Ale são:
- Bitter / Best Bitter / ESB
- Milds
- Porters e Stouts
- English Golden Ales
Por que esses estilos funcionam tão bem?
- Perfil de malte mais complexo: biscoito, toffee, caramelo, tostado leve;
- Lúpulos ingleses (Goldings, Fuggles, Challenger etc.) com caráter de chá preto e especiarias combinam com serviço a temperaturas mais altas;
- Leveduras inglesas altamente floculantes, com ésteres moderados, geram um perfil equilibrado em baixa carbonatação.
Hoje, muitas cervejarias “modernosas” também colocam em cask:
- English IPAs e American IPAs com pegada mais clássica;
- Barleywines;
- outras ales fortes.
O resultado, muitas vezes, lembra as primeiras IPAs importadas dos anos 2000: oxidada, caramelizada, mas agradável. Ou seja, é outra experiência sensorial, diferente do ideal “West Coast fresh” contemporâneo.
Cask Ale como “charme histórico”, o benefício real
João crava um ponto importante: o cask, por si só, não “melhora” a cerveja tecnicamente. Ele não traz maior estabilidade, maior shelf-life, nem maior precisão sensorial. Pelo contrário, a cerveja no cask é mais jovem, mais frágil, oxida mais rápido, depende muito da operação do pub.
Então qual é o benefício, afinal?
É possível citar precisão histórica (beber a cerveja de forma próxima ao modo tradicional), charme e ritual (marretar a torneira, puxar a beer engine, ver o efeito cascata etc.) e o ajuste sensorial (servir menos fria e com menos CO₂, elevando malte, lúpulo e levedura). Além disso, do ponto de vista de infraestrutura, é mais barato para muitos pubs operar cask do que ter câmara fria, linhas de gás e toda a parafernália de keg.
Cask Ale no século XXI: CO₂ como aliado de sobrevivência
Para não jogar litros e litros de Cask Ale fora nem matar pubs financeiramente, muitas casas no Reino Unido têm adotado ajustes modernos:
- Blanket de CO₂ ao final do expediente:
- pressões muito baixas (0,2–0,3 bar);
- objetivo não é carbonatar, mas formar uma “cama” de CO₂ protegendo a cerveja do oxigênio;
- Em alguns casos, injeção lenta de CO₂ substituindo o ar ambiente na reposição de volume, prolongando a vida útil sensorial do cask.
Do ponto de vista purista, isso foge da definição mais estrita de Real Ale. Mas, do ponto de vista de negócio e sobrevivência de pubs, é uma solução honesta para reduzir desperdício, manter qualidade por mais dias e manter o estilo vivo e vendável num mercado dominado por macrolagers.
Cask Lagers: Kellerbier, Zwickelbier e cia.
Nem só de ale vive o mundo do serviço por gravidade e baixa carbonatação. Na Alemanha, há uma tradição de lagers servidas “no cask” (embora com outros termos):
- Kellerbier
- Zwickelbier / Zwickel
- Ungespundet (Ungespundetes)
Características típicas:
- São lagers jovens, com 3–4 semanas;
- São servidas com carbonatação muito baixa;
- Podem ser levemente turvas, pois ainda estão em fase de decantação;
- São servidas diretamente do barril por gravidade, com pouco cuidado em “selar” o barril ou reter CO₂; o que dissolveu, dissolveu.
João traz um exemplo prático: ficou sem Pilsen no bar, mas tinha disponível uma Pilsen de 3 semanas, turva e com pouca carbonatação. Em vez de descartar, colocou na linha, alterou o quadro de “Pilsen” para “Kellerbier”… e funcionou. O público gostou, e, conforme a cerveja maturou e limpou, voltou a se chamar “Pilsen”.
Moral técnica da história: Kellerbier e Zwickelbier são, na prática, lagers em condição de serviço “cask-like”: jovens, pouco carbonatadas, servidas na gravidade, com foco na frescura e na rusticidade.
Como replicar a experiência de Cask Ale em casa (ou no bar)
Nem todo mundo tem acesso a casks britânicos, bungholes, spiles e beer engine. Mas é possível se aproximar da experiência com equipamentos mais comuns.
Usando bombinha de chope (picnic pump)
Aquele sistema clássico de filme americano, com bombinha manual no topo do barril:
- Você coloca a cerveja no barril (inclusive cascos de 10 L — ótimos para não “assassinar” 20 L de uma vez);
- Usa uma bombinha manual de ar para empurrar a cerveja para fora;
- O ar que entra é oxigênio, exatamente como na Cask Ale tradicional;
- A cerveja deve ser consumida em poucos dias.
É uma forma simples e muito próxima da experiência de cask, especialmente se você servir em temperaturas de cellar (10–13 °C) e usar uma ale inglesa bem feita, com levedura floculante e malte Maris Otter.
Usando post-mix deitado
Outra solução possível é:
- Encher parcialmente um post-mix;
- Deitar o barril;
- Inverter as conexões (servindo pelo poppet que normalmente receberia CO₂);
- Ir aliviando pressão para permitir a entrada de ar e manter o fluxo de serviço.
Ou ainda:
- Deixar o post-mix deitado;
- Conectar uma torneirinha na saída que fica na “altura da cerveja”;
- Abrir a torneira e deixar o ar entrar pela outra conexão, empurrando a cerveja.
Tecnicamente, o efeito é semelhante: serviço com mínimo ou nenhum CO₂ forçado, baixa carbonatação, exposição ao oxigênio e necessidade de consumo rápido.
Direto da bombona
No limite, para quem quer só entender a sensação:
- Fermentou, maturou, a cerveja está pronta na bombona com torneira;
- Sirva diretamente dali, sem CO₂;
- Observe:
- textura mais macia;
- menor carbonatação;
- como a percepção de malte, lúpulo e levedura muda em relação ao mesmo lote em garrafa ou keg carbonatado.
É a “ousadia borderline irresponsável” do cervejeiro caseiro. Mas perfeitamente válida como experimento sensorial.
Onde estudar mais: CAMRA – Campaign for Real Ale
Para quem quer se aprofundar mais, a grande referência citada é a CAMRA – Campaign for Real Ale.
A CAMRA produz: o Good Beer Guide (guia de pubs no Reino Unido); livros técnicos sobre Real Ale e cask; materiais sobre serviço, gestão de cellar, preservação de pubs históricos; além de vídeos e manuais de boas práticas de serviço.
Se o objetivo é viajar e visitar pubs com serviço correto de cask, aprender a montar estrutura de cask em brewpub, e entender a fundo o padrão sensorial esperado de cada estilo em cask, vale muito a pena estudar o material da CAMRA!
Conclusão: por que Cask Ale ainda importa?
Cask Ale não é “versão pior, quente e choca” da cerveja moderna. É um formato histórico de produção, acondicionamento e serviço que moldou a cerveja britânica como a conhecemos. Uma forma de consumo que coloca em evidência o malte inglês, o lúpulo tradicional, a levedura floculante e a habilidade do cellar worker.
Consiste ainda numa experiência sensorial específica: bebe-se uma cerveja com menos gás, mais textura de malte, mais temperatura, mais camadas de sabor, menos estabilidade, mais fragilidade e frescor.
Para o cervejeiro caseiro ou profissional que domina estilos ingleses em keg/garrafa, experimentar o formato cask é um passo natural de aprofundamento. Mostra como muda o perfil de sabor quando você altera apenas o formato de serviço, abre caminho para testar fermentações abertas, perfis de levedura, manejo de cellar, e o conecta com uma tradição viva, mas em risco de desaparecer em muitos lugares.
No fim, Cask Ale é sobre:
- História – beber como se bebia;
- Técnica – entender o impacto de fermentação, clarificação e serviço;
- Ritual – marreta, beer engine, pint servido na temperatura certa;
- Coragem de experimentar – típica do cervejeiro caseiro que faz algo pela primeira vez, com confiança quase arrogante.
Se você gosta de ales inglesas, já ganhou medalhinha com Bitter, Mild, Porter ou Stout, vale muito criar sua própria experiência de Cask Ale, seja com bombona, post-mix, picnic pump, ou, quem sabe, uma beer engine importada. É outra camada de profundidade num mesmo universo de estilos!

