#297 – A Hora Ácida #9: Por que não é possível produzir lambic no Brasil?

Introdução: espontânea não é “selvagem” — e Lambic não é estilo genérico

Neste episódio da série A Hora Ácida, Henrique Boaventura conversa com Diego Simão (Cervejaria e Sidreria Cozalinda) e responde, de forma técnica: por que Lambic não se produz no Brasil. O núcleo está no terroir — conjunto de fatores ambientais, biológicos, materiais e culturais impossível de replicar fora de origem.

Também se alinham os conceitos: fermentação espontânea (mínima intervenção com inoculação ambiental), fermentação mista (culturas selecionadas +/- ambiente) e o guarda-chuva “selvagem” (microrganismos não-industriais). Lambic pertence à espontânea tradicional de Bruxelas/Pajottenland, com método e denominação específicos.

É mais um papo que conta com a parceria da Hops Company, da Levteck e da Cerveja Stannis.

O que faz uma Lambic ser Lambic: os seis pilares não replicáveis

1) Microbiota residente (coolship, sala e barricas de madeira)

A inoculação não vem só do “ar da noite”. Existem três vetores de microbiota:
Ambiente interno/estruturas (sala do coolship, telhado): a maior reserva, estável ao longo dos anos.
Troca com o exterior (janelas/ventilação): contribuição sazonal adicional.
Barricas: limpas, porém não estéreis; a madeira abriga microbiota profunda e recorrente.
“Borrifar” garrafa no teto não substitui o ecossistema residente: a microbiota local sempre prevalece.

2) Clima e cinética fermentativa de longo prazo

A cinética na Lambic é regida por variações naturais de temperatura e umidade ao longo de 1–3 anos. Não é “X °C por Y dias”: a sazonalidade dita a sucessão microbiana e o perfil final. Replicar Bruxelas com controle rígido de temperatura/umidade contraria a mínima intervenção e não reproduz o terroir.

3) Matéria-prima com identidade local (lúpulo envelhecido, grãos autóctones)

A Lambic tradicional usa lúpulos envelhecidos e cevada/trigo com perfis agronômicos próprios. Iniciativas agrícolas regionais alteram cor e sabor, provando que “malte é malte” não se aplica quando o objetivo é fidelidade ao terroir.

4) Técnica e tradição (processo, não só receita)

Métodos como mash turvo (turbid mash), uso de trigo cru, ferves prolongadas, manejo de coolship e blendagem multissafras são técnicas históricas. Copiar etapas sem contexto ambiental e cultural não gera o mesmo resultado.

5) Mínima intervenção x climatização moderna

A climatização de salas de fermentação é vista como ameaça interna: “espontânea” pressupõe ceder às variações do ano. Domesticar o ambiente aproxima o processo do controle industrial e dilui o caráter dirigido pelo terroir.

6) Denominação e proteção legal

Lambic é denominação de origem associada a Bruxelas/Pajottenland. Fora dali, usar “Lambic” (ou “Lambic-style”) desinforma e fere a proteção cultural. Em processos brasileiros, o correto é rotular “espontânea brasileira” (quando de fato espontânea) ou fermentação mista/selvagem (quando há blends comerciais).

Clima muda — Lambic “morre”? Não, transforma (como sempre)

Mudanças climáticas modulam a Lambic; não a extinguem. Ao longo de séculos, safras quentes ou frias alteraram acidez e perfil, mantendo a identidade reconhecível. Lambic é continuidade sem repetição — característica do terroir.

Por que as tentativas de “copiar” Lambic fora da Bélgica falham

Mesmo com tecnologia (telemetria climática, salas herméticas, importação de barris, “semeadura” com garrafas), o ecossistema não se transfere. A microbiota local domina; barricas contam histórias próprias; e a lógica da fermentação espontânea entra em choque com controles artificiais. O resultado pode ser excelente, mas não é Lambic.

Brasil: o que fazer bem, sem chamar de Lambic

Nomear certo é parte da honestidade técnica

Descreva o processo real:
Espontânea brasileira — mosto em coolship, inoculação ambiente, mínima intervenção e maturação longa em barricas.
Fermentação mista/selvagem — uso de culturas comerciais (Brettanomyces, Pediococcus, Lactobacillus).
Relato do próprio Diego: rotular “Lambic-style” foi erro — aprendizado para o mercado.

Concursos e a confusão com frutas/complexidade

Categorias “Lambic/Gueuze” viram guarda-chuva para produtos nacionais (muitos com fruta), enviesando julgamentos.

A proposta? Não aceitar inscrições brasileiras como “Lambic/Frutilambic”, por rigor técnico e respeito à denominação de origem!

Caminhos propositivos: identidade e ingredientes do Brasil

Em vez de “copiar a Bélgica”, o convite é assumir brasilidade: ingredientes locais, projetos com denominação de origem brasileira, rotulagem transparente e educação contínua do consumidor e da comunidade técnica.

Glossário rápido

Fermentação espontânea: inoculação ambiental + mínima intervenção, maturação em madeira.
Fermentação mista: culturas selecionadas combinadas ao ambiente.
Selvagem: microrganismos não-industriais; não implica “espontânea”.
Terroir: microbiota residente, clima sazonal, ingredientes locais, arquitetura/instalações e tradição.

Checklist técnico — por que não é Lambic no Brasil

  1. Microbiota: consórcio residente de Bruxelas/Pajottenland é único e histórico.
  2. Clima/Umidade: cinética de 1–3 anos depende da sazonalidade local.
  3. Matéria-prima: lúpulo envelhecido e grãos regionais com identidade agronômica.
  4. Processo tradicional: mash turvo (turbid mash), coolship, blendagem multissafras.
  5. Mínima intervenção: climatização descaracteriza a lógica espontânea.
  6. Denominação: proteção de origem; uso do nome fora da região é indevido.

Educação, mercado e rótulos: o papel de quem produz e comunica

Mais do que “educar o público”, o lance é ser honesto. Use nomenclatura correta, abandone “Lambic brasileira” e valorize espontâneas brasileiras e mistas/selvagens com identidade local. Podcasts, cursos, rótulos transparentes e concursos coerentes são alavancas.

Conclusão

Lambic é inseparável do seu terroir. Fora de Bruxelas/Pajottenland, é impossível reproduzir o consórcio microbiano, a cinética climática plurianual, a matéria-prima e a tradição processual que definem a categoria — além da denominação de origem.

No Brasil, o caminho autoral existe: espontâneas brasileiras (quando de fato espontâneas) e fermentações mistas/selvagens com ingredientes e técnicas locais, rotuladas com precisão. Ganho duplo: rigor técnico e construção de identidade, sem atalhos de marketing.

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