A introdução de um estilo histórico
Este episódio da série Brassando com Estilo reúne Henrique Boaventura e João Kolling, cervejeiro brasileiro radicado na Escandinávia, para uma conversa profunda sobre um dos estilos ingleses mais tradicionais e ao mesmo tempo desafiadores de se reproduzir: Best Bitter.
Kolling, profissional desde 2013 e com passagens por cervejarias como Seasons, Dogma e a sueca Good Guys Brew, atualmente comanda a produção da Scouse Kjelleren em Oslo, Noruega. Além de elaborar receitas para mais de 14 bares e restaurantes, ele mantém viva a tradição do serviço em cask ale, prática que exige conhecimento técnico e respeito às raízes da cultura britânica da cerveja.
“A vida era mais simples, né? Era abrir a torneira, servir três palmos de espuma e deixar a cerveja se formar sem gaseificação”, comenta Boaventura, refletindo sobre a essência das ales inglesas.
No bar em que atua, Kolling serve regularmente a Oslo Best Bitter (OBB), uma cerveja de linha que mantém viva a tradição das Bitters, tanto na receita quanto na apresentação: clarificação perfeita, baixa carbonatação e serviço no cask com beer engine — a bomba manual que puxa a cerveja diretamente do barril sem o uso de CO₂.
Não perca esse episódio, que conta com a parceria da Hops Company, da Levteck, da EZbrew e da Cerveja Stannis.
A origem e a confusão dos estilos “Bitters”
Ordinary, Best e Strong Bitter — um mal-entendido americano
Segundo Kolling, a classificação das bitters — Ordinary, Best e Strong — é, em grande parte, uma construção americana. Ele critica a tendência de categorização rígida promovida por guias como o BJCP (Beer Judge Certification Program), que tentam enquadrar tradições britânicas fluídas em divisões fixas.
“É uma grande patacoada de americano. Eles têm esse dom de falar com propriedade sobre o que não sabem. E a gente, como colonizado, acaba acreditando.”
Na Inglaterra, as cervejas raramente são rotuladas como Best Bitter. O termo comercial mais comum é Premium Bitter, Extra Bitter ou até Extra Pale Ale. O conceito de “Best Bitter” foi consolidado para atender a competições e padronizações internacionais, mais do que refletir a nomenclatura histórica do Reino Unido.
Ainda assim, como ressalta Kolling, a última revisão do BJCP foi feliz ao abolir o estilo ESB (Extra Special Bitter) — uma categoria redundante e confusa — mantendo apenas as divisões que se provaram mais coerentes: Ordinary, Best e Strong Bitter.
A história tributária da cerveja britânica
O papel da lei e da água de Burton
A história das bitters, assim como de toda a cerveja inglesa, é indissociável da política tributária britânica. Kolling explica que as transformações nos estilos estão profundamente ligadas às formas de taxação sobre o malte e o extrato original do mosto.
No final do século XIX, a Lei de Tributação do Extrato Original alterou completamente a forma de produção: os impostos passaram a ser cobrados com base no teor de açúcares extraídos na mostura, e não mais no volume final da cerveja. Com isso, as cervejarias começaram a usar açúcar invertido, milho e adjuntos para reduzir o extrato inicial, economizando em tributos, mas mantendo o teor alcoólico desejado.
Além disso, fatores geográficos tiveram papel determinante. As cervejas produzidas em Burton-on-Trent, por exemplo, apresentavam um perfil distinto das fabricadas em Londres, devido à famosa água burtonizada, rica em sulfatos e sais minerais que realçam o amargor e a secura da cerveja.
“As cervejas de Burton tinham um perfil completamente diferente das de Londres. A água fazia toda a diferença”, destaca Kolling.
Adjuntos, açúcares e criatividade na adversidade
Durante o período entre guerras, as restrições econômicas e a escassez de cereais forçaram os cervejeiros a serem criativos. O uso de flocos de milho (até 40%) e açúcar invertido (até 20%) se tornou prática comum, criando bitters mais leves e menos alcoólicas.
Esses açúcares, chamados na época de brewing sugars, eram proprietários — cada fabricante tinha sua fórmula secreta — o que torna difícil recriar receitas históricas com exatidão. Kolling comenta que muitos desses açúcares influenciavam cor e corpo, mas pouco o sabor, sendo usados mais como ajustes de cor (caramel colouring) do que como ingredientes aromáticos.
“A história da cerveja britânica é basicamente a história das guerras e dos tributos”, resume Kolling, em tom de ironia e precisão histórica.
O impacto inglês na escola belga
O diálogo histórico não se limita às ilhas britânicas. No final do século XIX, diversas famílias de cervejeiros belgas e franceses enviaram seus filhos para estudar em Londres — então o centro industrial e tecnológico do mundo. De lá, eles retornaram com novos conhecimentos sobre maltagem, fermentação e uso de açúcares.
Foi assim que o candy sugar belga nasceu, inspirado nos açúcares invertidos ingleses. O intercâmbio de técnicas também influenciou estilos como a Viena Lager e a Märzen, criadas a partir do aprendizado de cervejeiros austríacos na Inglaterra, que adaptaram o pale malt inglês às suas realidades locais.
“A primeira Märzen era chamada de Märzen de Viena — a cerveja de março de Viena. O Dreyer só conseguiu fazer isso porque aprendeu a maltar na Inglaterra.”
Best Bitter segundo o BJCP
Características sensoriais e desafios de equilíbrio
A Best Bitter é descrita pelo BJCP (categoria 11B) como uma cerveja session saborosa, mas refrescante, cuja complexidade vem da sutileza e do equilíbrio.
Kolling destaca a dificuldade técnica do estilo:
“É a famosa coberta curta — se tu tapa os pés, fica com frio no peito. Se tapa o peito, fica com frio nos pés. Tem que achar o ponto certo de equilíbrio.”
O desafio está em oferecer sabor e personalidade sem perder drinkability. O malte deve marcar presença, mas sem se sobrepor ao amargor; o lúpulo deve equilibrar sem agredir. A refrescância e a facilidade de consumo são elementos críticos.
Aparência
- Cor: âmbar claro a cobre médio (8 a 16 SRM)
- Limpidez: boa a brilhante, valorizando o brilho do pint
- Espuma: branca a off-white, baixa a moderada
João enfatiza a importância da aparência — muitas vezes negligenciada por cervejeiros caseiros:
“A cerveja tem que ser bonita. Aquela cor cobre com o reflexo avermelhado é uma das coisas mais lindas que tem. Quando você enfia a lanterna na bunda do copo e sobe aquele vermelho… é emocionante.”
Sabor e aroma
- Amargor: médio a moderadamente alto (25–40 IBU)
- Ésteres: frutados, de moderadamente baixos a altos
- Perfil de lúpulo: terroso, resinoso, frutado ou floral
- Malte: notas de pão, biscoito, toffee e leve tostado
- Final: seco, com equilíbrio voltado levemente ao amargor
João lembra que qualquer exagero compromete a bebida:
“Cerveja boa, mas doce demais, enjoa. Tostado demais, dá guspe ruim. Amargor harsh, parece cigarro. É uma cerveja que te cobra precisão.”
Corpo e carbonatação
- Corpo: leve a médio
- Carbonatação: baixa, podendo ser moderada em versões engarrafadas
A Best Bitter é uma cerveja para ser servida no cask e consumida fresca. Após aberta, deve ser esvaziada rapidamente, pois a oxigenação natural altera seu perfil sensorial.
Parâmetros do estilo segundo o BJCP
| Parâmetro | Faixa típica |
| Densidade inicial (OG) | 1.040 – 1.048 |
| Densidade final (FG) | 1.008 – 1.012 |
| Amargor (IBU) | 25 – 40 |
| Cor (SRM) | 8 – 16 |
| Álcool (ABV) | 3,8 – 4,6% |
João brinca que o guia é exigente, mas justo:
“O BJCP sabe o que faz. É uma cerveja difícil de acertar — o guia é teu amigo, não briga com ele.”
Exemplos comerciais clássicos
O BJCP lista alguns nomes emblemáticos do estilo, embora raramente disponíveis no Brasil:
- Adnams Southwold Bitter
- Fuller’s London Pride
- Harvey’s Sussex Best Bitter
- Salopian Darwin’s Origin
- Timothy Taylor Landlord
“A London Pride até chega no Brasil, se tu dirigir até Rivera”, ironiza João, lamentando o acesso limitado às bitters autênticas.
A base de malte: o coração da Best Bitter
Ao entrar nos aspectos práticos de formulação, João é direto:
“O enfoque é no biscoito e no tostado. Não há alternativa — tem que ser Maris Otter.”
O malte ideal
O Maris Otter é a base clássica do estilo, responsável pela riqueza maltada e corpo característico das bitters. Porém, João reconhece o custo elevado e sugere alternativas viáveis para cervejeiros caseiros:
- Malte Biscuit (GingerMans)
- Malte Amber (Crisp)
- Munique Dark ou Melanoidina (em pequenas proporções)
O segredo, segundo ele, é encontrar o ponto de equilíbrio sem tornar a cerveja doce:
“O caramelo escuro é ótimo para adicionar tostado e complexidade, mas em excesso mata o drinkability. Use até o limite indicado pelo fabricante.”
Entre a tradição e a experimentação
Kolling também defende o uso de maltes históricos maltados no chão, como os da linha Heritage da Crisp, que reproduzem técnicas do início do século XIX. Ele incentiva o uso de pequenas maltarias locais, que oferecem perfis de sabor únicos e autenticidade ao produto final.
“Aparecer uma variação bizarra — no bom sentido — é o que deixa a cerveja viva.”
Mostura, paciência e panela: o papel do regime térmico
João Kolling reforça que o regime de mostura é decisivo para o resultado final da Best Bitter. Ele comenta que, mesmo utilizando maltes históricos como os da linha Crisp Heritage, não há necessidade de rampas complexas — os maltes já são suficientemente modificados.
“Eu não faço rampa pra bitter porque, primeiro, não tenho paciência. E segundo, porque a minha panela é de infusão simples, 500 litros, chinesa de 2009. E funciona muito bem.”
Essa simplicidade resume bem a filosofia inglesa: eficiência prática. A mostura única entre 65°C e 67°C é suficiente para atingir o corpo médio-baixo desejado e a boa atenuação, respeitando a natureza dos maltes e a proposta do estilo.
História, humor e propósito: para quem você está brassando?
Entre risadas, João e Boaventura levantam uma reflexão importante: qual o objetivo do cervejeiro ao produzir uma Best Bitter?
“Tem que decidir se quer fazer pra BJCP, se quer fazer pra tomar, ou se quer fazer algo historicamente legal pra entender como se bebia em 1900.”
A definição desse propósito direciona escolhas de ingredientes e processo. Se o foco for competição, a recomendação é clara: use Maris Otter, um toque de caramelo médio e escuro, e evite o milho flocado, que reduz o corpo e altera a sensação de boca.
“Se for pra medalhar, gaste um pouquinho mais. O guia de estilos é teu amigo — siga o que está escrito.”
Malte e cor: o equilíbrio entre complexidade e drinkability
O uso de caramelos em blend é defendido por João como uma forma de modular a cor e o perfil tostado sem comprometer a leveza:
- Um caramelo baixo (10–20 L) para corpo e doçura sutil
- Um caramelo médio (40–60 L) para notas de toffee
- Uma mínima adição de malte black (0,5%) para ajuste de cor e secura final
A meta é chegar ao deep copper, aquele âmbar profundo e brilhante que emociona quando a luz atravessa o pint.
Mostura e fermentação alinhadas ao BJCP
Para atender aos parâmetros do guia, a mostura ideal deve permanecer entre 65°C e 67°C por 60 minutos, ajustando conforme a levedura escolhida e o uso ou não de adjuntos como milho.
“Se usar milho, mantenha mais baixo. Se quiser uma boca mais cheia, pode subir um pouco. O importante é brincar dentro do estilo, com consciência.”
Lúpulos: tradição, sutileza e o charme da laranja inglesa
Variedades clássicas e combinações vencedoras
Kolling afirma que o universo do lúpulo na Best Bitter é de janela estreita: foco em variedades inglesas ou descendentes diretas. Seu favorito é o Celeia, uma variedade tcheca derivada dos Goldings, que traz notas de laranja e marmelada quando combinado a uma base maltada rica.
Entre os clássicos, os mais recomendados são:
- Target – para amargor limpo e toques cítricos lembrando chá preto
- Challenger – equilíbrio entre terroso, floral e frutado
- Fuggles e Goldings – dupla tradicional de aroma e sabor
- Celeia – variação tcheca com perfil cítrico elegante
“O Fuggles com Target é uma combinação perfeita. É o Earl Grey das bitters.”
Fervura e caramelização: atenção aos detalhes térmicos
Na fervura, a recomendação é clara: não complique. A Best Bitter pede fervura simples, de 60 minutos, com foco em consistência e cuidado com a caramelização excessiva, especialmente em sistemas elétricos.
“Se tua fervura é elétrica, regula a intensidade. Evite caramelizar demais ou você pode acabar com uma Special Bitter.”
Caramelização exagerada pode gerar notas de butterscotch, facilmente confundidas com diacetil em avaliações — um erro que pode custar pontos no BJCP. O equilíbrio está em manter a fervura eficiente, mas moderada.
Leveduras inglesas: esterificação e personalidade
A escolha da levedura define a alma da Best Bitter. João lista suas favoritas:
- Fermo Ale (AEB) — correspondente à West Yorkshire Ale, seca e frutada
- S-04 (Fermentis) — clássica, confiável e amplamente usada
- Burton Ale — sua “house yeast”, equilibrando floculação e caráter maltado
Henrique complementa com outras opções viáveis, como a London Ale da Levteck, lembrando que conhecer o comportamento de cada cepa é essencial.
“Conheça seu fermento, saiba o que ele entrega. A cerveja é sua — tenha autoridade sobre o que faz.”
Clarificação e aparência: a estética também importa
Kolling encerra o tema técnico reforçando que uma cerveja bonita também é uma cerveja bem feita. Se a levedura não for naturalmente floculante, o uso de clarificantes é bem-vindo — especialmente para quem não dispõe de fermentadores cônicos.
“Boa aparência é barba bem feita, cabelinho na régua, dentinho escovado. E cerveja clarinha, translúcida.”
Além de estética, a clarificação garante estabilidade sensorial e melhora a percepção de frescor, mesmo após meses de armazenamento refrigerado.
Água: a tentação da “Burtonização”
João diverte-se ao comentar os exageros de alguns cervejeiros que “rebocam parede” de tanto adicionar sais na água.
“Já vi gente fazendo 300 ppm de tudo. Eu chamo de leite de burra. É o famoso reboco líquido.”
A recomendação é buscar uma relação de sulfato para cloreto de 2:1, mas sem ultrapassar 250 ppm de sulfato. Água excessivamente mineralizada compromete tanto o equilíbrio de sabor quanto a saúde do cervejeiro.
Diretrizes práticas para águas brasileiras
- Para águas de superfície (moles), ajuste leve de sulfato (até 250 ppm) e cloreto (80–100 ppm)
- Mantenha pH estável, evitando correções agressivas com ácido lático
- Prefira um equilíbrio natural e econômico: “deixe sua água ser feliz”
A receita da Best Bitter de João Kolling
| Parâmetro | Valor |
| Volume final | 20 L |
| OG | 1.041 |
| FG | 1.010 |
| ABV | 4,0% |
| Cor | 19 EBC |
| Amargor | 32 IBU |
Ingredientes
- Malte base: 3 kg de Maris Otter
- Adjunto: 500 g de milho em flocos
- Caramelo claro (100 L): 200 g
- Caramelo escuro (400 L): 100 g
- Lúpulos:
- 20 g Challenger (7,5% AA) — 60 min (19 IBU)
- 20 g Celeia (4,5% AA) — 20 min (7 IBU)
- 20 g Fuggles (4,5% AA) — 20 min (7 IBU)
- Levedura: London Ale / Boddington / Fermo Ale (West Yorkshire)
Processo
- Mostura: 65°C por 60 minutos
- Fervura: 60 minutos
- Fermentação: 20°C linha reta até o final (ou 17–20°C para S-04)
- Condicionamento: sob pressão leve nos últimos pontos de atenuação
Armazenamento e consumo
A Best Bitter é uma cerveja melhor fresca, mas pode manter boa qualidade por até seis meses a um ano se refrigerada e protegida do oxigênio. A oxidação natural tende a ressaltar notas de caramelo e reduzir o frescor lupulado, mas sem comprometer totalmente o sabor.
Referências e leituras recomendadas
Para quem deseja mergulhar no universo das bitters, João e Henrique indicam leituras essenciais:
- Martin Cornell – “A História das Cervejas Britânicas” (traduzido para o português)
- Dave Sutula – “Mild Ale”
- Ron Pattinson – “Bitter” e Home Brewer’s Guide for Vintage Beer
- Gordon Strong – “Brewing Better Beer”
“BJCP e história são caminhos diferentes. Se quer medalhar, siga o guia. Se quer entender o passado, mergulhe nos livros.”
Conclusão — Uma cerveja simples, mas nada fácil
A Best Bitter é o retrato da elegância na moderação. Exige domínio técnico, entendimento de ingredientes e uma filosofia de simplicidade que muitos cervejeiros demoram a conquistar.
Entre tradição, precisão e uma boa dose de humor, o episódio com João Kolling mostra que brassar uma Bitter é também entender a alma do ofício: fazer bem o básico, com propósito e respeito à história.
“A realidade é uma construção social. E na cerveja, a verdade é que o equilíbrio é o que faz tudo ser bonito.”

