#289 – Cerveja sem glúten

Cervejas sem glúten: o caso da Salva Craft Beer

A intolerância e a sensibilidade ao glúten têm impulsionado uma demanda crescente por produtos adaptados, incluindo cervejas. O glúten — presente em cereais como trigo, centeio e cevada — pode causar sérios problemas para pessoas com doença celíaca, uma condição autoimune que provoca inflamação intestinal e deficiência nutricional mesmo em traços mínimos (acima de 20 ppm).

Nesse cenário, algumas cervejarias vêm se destacando na produção de cervejas sem glúten, e a Salva Craft Beer, de Bom Retiro do Sul (RS), deu um passo ousado: transformar toda sua linha de produtos em versões sem glúten.

Neste episódio, com a parceria da Lamas Brewshop, da Hops Company, da Levteck e da Cerveja Stannis, Henrique Boaventura e Thiago Wild, da Salva Craft Beer, exploram todos os aspectos técnicos e estratégicos dessa transição.

O propósito: inclusão e tendência de mercado

Desde a sua fundação, a Salva sempre buscou oferecer cervejas de qualidade a preços acessíveis. Segundo Thiago, a motivação para a mudança foi ampliar o público e atender uma demanda de consumidores que, por restrições alimentares ou busca por maior saudabilidade, procuram produtos sem glúten.

Hoje, grande parte das cervejas sem glúten no mercado nacional se limita às tipo Pilsen. A Salva rompeu essa barreira, oferecendo cerca de 10 rótulos — incluindo IPAs, APAs, Bocks e outros estilos — todos adaptados para não conter glúten.

Além do fator inclusivo, há um alinhamento com a tendência de consumo da Geração Z, que valoriza produtos percebidos como mais leves e com menor potencial inflamatório.

Método de produção: uso de enzimas

Por que enzimas e não grãos alternativos

A Salva optou por manter suas receitas originais à base de malte de cevada e utilizar enzimas para degradação do glúten durante a fermentação. Diferente da substituição por grãos naturalmente sem glúten (como sorgo, arroz, milho, trigo sarraceno ou amaranto), o uso da enzima preserva o perfil sensorial e evita desafios técnicos como:

  • Falta de casca (dificulta filtragem)
  • Baixo poder diastático
  • Alta temperatura de gelatinização

Processo e aplicação

  • Etapa de aplicação: fermentação.
  • Dosagem: junto com o inóculo de levedura ou no primeiro dia de fermentação.
  • Função: quebra da estrutura proteica do glúten ao longo de vários dias, reduzindo os níveis para abaixo de 20 ppm.
  • Benefícios adicionais: maior estabilidade e shelf-life, com redução de turbidez precoce.

Impacto no processo e no produto

Fermentação e leveduras

  • As cepas utilizadas já eram majoritariamente liofilizadas, minimizando riscos de contaminação cruzada.
  • O espectro de leveduras é enxuto: 1 cepa lager e 2 ale.
  • Não houve alteração perceptível nos tempos de fermentação ou rampas de temperatura.

Corpo e perfil sensorial

  • Painéis sensoriais apontaram mínima diferença de corpo, sem prejuízo à drinkability.
  • Formação de ésteres permaneceu estável devido ao uso de leveduras neutras.
  • O resultado é uma cerveja “mais leve”, favorecendo o consumo em maior quantidade sem sensação de estufamento.

Estabilidade e shelf-life

  • A enzima contribui para prolongar a estabilidade, especialmente em envases PET, retardando o aparecimento de turbidez.

Controle de qualidade e certificação

Planta exclusiva

Toda a produção da Salva — incluindo experimentais — é dedicada a cervejas sem glúten, reduzindo riscos de contaminação cruzada.

Métodos Analíticos

  • Análises internas via método ELISA.
  • Testes mensais interlaboratoriais com método competitivo, recomendado para bebidas onde a proteína está hidrolisada.
  • Legislação brasileira: qualquer produto com menos de 20 ppm de glúten pode ser rotulado como “sem glúten”.

Criação de novas receitas

  • A adaptação para sem glúten não exigiu reformulação de receitas existentes.
  • Novas cervejas desenvolvidas já seguem o mesmo processo, mantendo perfil sensorial e performance em concursos (ex.: American Barley Wine premiada na Copa Guarani).
  • Planta piloto de 300 L permite testes em escala relevante antes da produção em lotes maiores.

Cerveja sem glúten para cervejeiros caseiros

É possível produzir cerveja sem glúten em casa usando enzimas disponíveis no mercado. No entanto, a atenção à assepsia e à contaminação cruzada deve ser redobrada.

Para quem opta por grãos naturalmente sem glúten, a complexidade aumenta, pois não há a “segurança” de uma enzima agindo na fermentação.

Aceitação do público

A Salva adotou uma estratégia de comunicação inteligente: antes de anunciar a mudança, distribuiu cervejas já sem glúten para consumidores habituais, colhendo feedback.

O slogan “Você já tomava, mas não sabia” sintetiza a percepção de que o produto manteve a qualidade e o sabor característicos.

Próximos passos

A cervejaria segue explorando novos estilos e tendências:

  • Linha “Quintas-Feiras” com cervejas extremas e criativas (ex.: Sweet Stout com frutas).
  • Produção de estilos clássicos sem glúten.
  • Desenvolvimento de cervejas sem álcool (Pilsen e Session IPA).

Conclusão

A experiência da Salva Craft Beer mostra que é possível transformar toda uma linha de produção em cervejas sem glúten sem comprometer sabor, corpo ou estabilidade. A estratégia baseada no uso de enzimas:

  • Preserva receitas originais
  • Mantém consistência sensorial
  • Atende demandas de inclusão alimentar
  • Traz ganhos técnicos e mercadológicos

O case reforça que inovação no setor cervejeiro não precisa estar ligada apenas a novos estilos ou insumos exóticos, mas também à capacidade de adaptar processos para ampliar o alcance e a relevância da marca.

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