#292 – Brassando com Estilo: Mixed-Fermentation Sour Beer

O universo das cervejas ácidas e complexas sempre desperta curiosidade entre cervejeiros caseiros e profissionais. Neste episódio do Brassagem Forte, Henrique Boaventura recebe novamente Ingrid Matos, cervejeira premiada e especialista em estilos Sour, para discutir em profundidade a categoria Mixed-Fermentation Sour Beer segundo o BJCP 2021.

Esse papo, que conta com a parceria da Lamas Brewshop, da Hops Company, da Levteck e da Cerveja Stannis, traz desde definições e parâmetros técnicos até debates sobre bases ideais, uso de microrganismos, madeiras e blendagens.

O que define o estilo Mixed-Fermentation Sour Beer

A categoria no BJCP

O estilo 28B Mixed-Fermentation Sour Beer abrange cervejas fermentadas com qualquer combinação de Saccharomyces, Lactobacillus, Pediococcus e/ou Brettanomyces, além de outros micro-organismos que não apresentem riscos à saúde.

  • Pode ou não ter envelhecimento em madeira, mas não deve se enquadrar em outras categorias específicas (como Brett Beer 28A ou Straight Sour Beer 28D).
  • Em geral, são interpretações modernas, artesanais ou experimentais inspiradas em Sour Ales belgas, mas com roupagem contemporânea.

Impressão geral

Segundo o BJCP, trata-se de uma versão ácida e funky de um estilo base de cerveja.

  • O aroma varia com o estilo base, mas deve apresentar notas perceptíveis a fortes de micro-organismos não Saccharomyces, como caráter selvagem, funky ou ácido, sem ser agressivo.
  • A aparência pode variar; limpidez não é obrigatória e turbidez baixa não é falha. Retenção de espuma costuma ser limitada.
  • O sabor deve equilibrar a cerveja base e o caráter microbiano, variando de ácido intenso até perfis sutis e harmoniosos. A acidez deve ser firme, mas nunca agressiva ou avinagrada (ácido acético perceptível é falha).
  • Na sensação de boca, corpo tende a ser baixo, com carbonatação moderada a alta.

Inscrição em concursos e comparações de estilo

O desafio da inscrição

Ao inscrever uma cerveja nessa categoria, o cervejeiro deve detalhar o estilo base, microrganismos utilizados e o caráter esperado. É justamente na inscrição que muitos participantes erram: clareza e precisão são fundamentais para um julgamento justo!

Comparação com outros estilos

O estilo pode lembrar versões ácidas e funk de bases clássicas, mas nunca deve ultrapassar o perfil esperado de outros estilos históricos como Flanders Red, Oud Bruin ou Lambic, que já possuem categorias próprias.

Exemplos comerciais

Entre os rótulos citados no episódio estão:

  • Stannis Alma Mater (Brasil)
  • Boulevard Love Child (EUA)
  • Jester King Le Petit Prince (Session Saison selvagem)
  • Jolly Pumpkin Oro de Calabaza (Strong Ale com Brett)
  • Lost Abbey Ghosts in the Forest (Blonde Ale blendada)
  • New Belgium L’Etoile (Lager envelhecida em carvalho com dry hop)
  • Russian River Temptation (Blonde Ale maturada em foeders)

Essas referências ilustram como diferentes bases podem gerar resultados variados e complexos, desde versões leves e refrescantes até perfis mais intensos e maturados.

Bases ideais para Mixed-Fermentation

Existe uma base “coringa”?

Henrique questionou se haveria uma base “mágica” que funcionasse com qualquer fermentação mista. Ingrid defendeu que qualquer base pode ser usada, desde que bem pensada e planejada. A chave está no estudo do perfil da base e do microrganismo utilizado.

Bases sugeridas

  • Belgian Blonde Ale: boa complexidade de ésteres, perfil esperado de explosão sensorial.
  • Old Bruin / Dark Sours: bases maltadas e ricas em sabores funcionam bem.
  • Lagers e Session Ales: surpreendem em combinações, como a Brett Lager da Zalaz.

Bases muito alcoólicas (ex: Golden Strong Ale) tendem a confundir o perfil, mas podem funcionar se bem planejadas.

Microrganismos: blends e isolados

O papel do blend

  • Blends comerciais (como os da Levtec) oferecem segurança, repetibilidade e praticidade.
  • São recomendados para quem está começando ou busca consistência sem suporte laboratorial.

O uso de cepas isoladas

  • Mais indicado para quem já domina o estilo.
  • Permite construir perfis sensoriais específicos (ex: reforçar o funk da Brett ou a acidez do Pediococcus).
  • Exige controle microbiológico e experiência, além de maior risco de variação entre lotes.

A importância do controle de fermentação

Fermentações mistas exigem que o mosto seja planejado para alimentar cada micro-organismo.

Um mosto mal preparado gera cerveja contaminada e sem complexidade. Já um mosto pensado permite explorar subprodutos (ésteres, fenóis, acidez limpa ou complexa, funk) de forma intencional.

Como Ingrid resumiu: “A fermentação é a dona da cerveja”.

O papel da madeira

A maturação em madeira pode adicionar complexidade, mas deve ser secundária ao caráter de fermentação.

  • Carvalho é o padrão do BJCP, mas Ingrid destacou o potencial das madeiras brasileiras para trazer identidade sensorial e taninos interessantes.
  • Chips, espirais e pequenas adições também funcionam, reduzindo o risco de oxidação excessiva.

Cervejas jovens x maturadas

Nem toda Mixed-Fermentation precisa de longo envelhecimento.

  • Cervejas jovens (como algumas Saisons e Blondes com Brett) podem ser refrescantes e equilibradas.
  • Cervejas maturadas ganham camadas de complexidade, mas exigem paciência e controle.
  • O frescor pode ser explorado especialmente em Sour com frutas, como o exemplo da Abaporu, da Verace, feita com cajá-manga e goiaba.

Receita base sugerida por Ingrid Matos

  • 80% malte Pilsen
  • 12% trigo
  • 4% aveia em flocos
  • 4% malte Biscuit (ou variações com malte de trigo escuro/Carafa I para versões escuras)
  • Mosturação simples, sem complexidade excessiva
  • Primeira fermentação: Lactobacillus (Levteck, cepa Butinéri) – cerca de 48h
  • Fermentação principal: American Ale + Brettanomyces (Levteck) em concomitância
  • IBU: baixo (~20 IBU)
  • Fermentação: curta para treinar percepção sensorial ou prolongada para evolução em garrafa/barril

Conclusão

As Mixed-Fermentation Sour Beers representam um campo de experimentação amplo e desafiador dentro da cervejaria artesanal. Mais do que um estilo rígido, são um convite à criatividade, sempre fundamentada em bom senso, estudo e controle de fermentação.

Não existe receita de bolo: cada cervejeiro precisa definir o perfil desejado e construir sua base e regime de fermentação a partir desse objetivo. Seja em versões jovens, frescas e frutadas, ou em rótulos maturados com madeira e blendagens complexas, o estilo mostra que a verdadeira magia está no equilíbrio entre arte e ciência da fermentação.