#302 – História da cerveja alemã, Rauchbier e Bamberg:

Neste episódio especial do Brassagem Forte, Henrique Boaventura recebe o austríaco Andreas Krennmair, para um mergulho histórico e técnico nas tradições cervejeiras alemãs.

É mais um papo de altíssimo nível e conhecimento, que conta com a parceria da Hops Company, da Levteck, da EZbrew e da Cerveja Stannis.

O historiador que fez a cerveja falar alemão novamente

Andreas Krennmair é um dos maiores pesquisadores contemporâneos da história da cerveja germânica. Autor de obras como Historic German and Austrian Beers for the Home Brewer, Vienna Lager e Bavarian Brewing in the 19th Century, ele reconstrói receitas e métodos perdidos para que cervejeiros caseiros e estudiosos possam entender e reviver estilos que quase desapareceram.

No episódio, ele conta que seu interesse nasceu em 2012, quando começou a fazer cerveja em casa e percebeu o quanto a história da bebida estava documentada em antigos manuais técnicos alemães. O desafio? A maioria desses textos jamais foi traduzida. Por ser falante nativo de alemão e fluente em inglês, Krennmair se tornou um elo entre o passado cervejeiro germânico e a comunidade global.

Cerveja feita com simplicidade e propósito

Ao contrário do que se imagina de um pesquisador tão técnico, Andreas mantém um equipamento básico e manual: duas panelas elétricas de cerca de 28 litros, um escorredor usado como distribuidor de água de lavagem, baldes plásticos de fermentação e um simples termômetro externo.

Segundo ele, o sistema “low-tech” é uma vantagem para reproduzir brassagens históricas — especialmente processos de decocção dupla ou tripla, ou mostras com fervura extrema para alcançar altas densidades, como 30°P (Plato). Para lagers, ele usa uma geladeira com controle de 0°C a 10°C; para ales, apenas um cômodo com temperatura estável.

“Nossos ancestrais faziam cerveja com fogo e pedras quentes”, diz. “O essencial é entender o processo, não o equipamento”.

Estilos preferidos e experimentos com a tradição

Krennmair dedica suas brassagens pessoais aos estilos que não encontra facilmente, mesmo morando na Alemanha. Seus favoritos são lagers vienenses, Dark Lagers tchecas e English Best Bitter, este que ele considera praticamente inexistente no mercado alemão.

Um de seus experimentos mais curiosos foi reproduzir o perfil de água de uma cervejaria da Francônia, rica em magnésio e sulfatos — algo que pareceria “errado” para uma pale lager, mas que produziu resultados surpreendentes. O sabor ficou quase idêntico ao da cerveja original.

“Gosto de entender por que algo funciona”, afirma. “Cada detalhe técnico é uma lição sobre a história.”

Os estilos esquecidos da Alemanha

Antes da Revolução Industrial, a Alemanha era um mosaico de estilos locais. Cada cidade tinha sua “Lokalbier”, e as cervejas de baixa fermentação — as lagers — eram típicas apenas da Baviera.

Com a industrialização e o sucesso dos estilos bávaros, pequenas cervejarias familiares não conseguiram competir. O resultado foi a extinção de centenas de estilos regionais. Dos sobreviventes, restam poucos: Berliner Weisse e Gose, do norte; Kölsch e Altbier, do vale do Reno; e, claro, a Rauchbier de Bamberg, uma das raras cervejas que mantiveram viva a tradição medieval.

Essa perda, diz Andreas, foi tanto econômica quanto cultural: “A padronização matou a diversidade cervejeira local”.

Bamberg: a cidade que resistiu à homogeneização

O grande diferencial de Bamberg é a resistência à lógica de crescimento e padronização. A cidade manteve cervejarias familiares que produzem para o mercado local, sem pressa de expandir ou atender acionistas.

“Essas famílias não têm dívidas nem pressões externas. Elas conhecem o gosto do público e mantêm sua identidade”.

Além disso, Bamberg abriga marcos da indústria cervejeira alemã: a maltaria Weyermann, a Bamberger Malz e o fabricante de equipamentos Kasper Schulz.

Mesmo assim, o orgulho local se mantém: cada cervejaria tem seu público fiel, e não há pressão por uniformidade. Essa independência permitiu que estilos como a Rauchbier sobrevivessem, enquanto outras regiões se industrializavam.

Rauchbier: o eco defumado do passado

A Rauchbier, ícone de Bamberg, é o elo mais tangível com a história. Até o início do século XIX, praticamente todo malte seco ao fogo era defumado, técnica na qual o ar quente passava pela madeira em combustão e entrava em contato direto com os grãos.

Quando surgiram os fornos sem fumaça, a maioria das cervejarias trocou a técnica para obter maltes “limpos”. Mas em Bamberg, alguns produtores mantiveram o defumado, talvez por preferência local ou pela impossibilidade de modernizar os equipamentos. Antes da Segunda Guerra, quatro cervejarias ainda produziam Rauchbier: Schlenkerla, Spezial, Greifenklau e Polabier. Hoje, apenas as duas primeiras seguem ativas, mantendo viva a tradição de defumar o próprio malte com madeira de faia (e, mais recentemente, com outras variedades, como cerejeira e amieiro).

Schlenkerla lidera a inovação, testando diferentes tipos de madeira e ampliando o repertório da Rauchbier — que significa, literalmente, “cerveja defumada” —, de Märzen e Urbock a versões de trigo e até uma Piwo Grodziskie defumada.

Ungespundet: a técnica discreta de Bamberg

Outro traço distintivo da região é o método Ungespundet, ou “sem tampa”. Durante a maturação, as cervejas não são totalmente vedadas, permitindo que parte do CO₂ escape. O resultado é uma carbonatação suave e corpo mais leve, o que torna a bebida extremamente refrescante e fácil de beber.

É comum nas cervejarias locais como Mahr’s Bräu e Spezial, que ainda servem seus barris por gravidade. “É quase uma cask lager alemã”, brinca Henrique. Para Krennmair, o Ungespundet é um símbolo da identidade bávara-franconiana: “Simples, funcional e profundamente ligado à experiência social da cerveja”.

Cultura e sociabilidade: o coração líquido de Bamberg

Mais do que técnica, Bamberg é um caso exemplar de integração entre cultura e cerveja. Nos Bier Kellers — jardins e porões onde a cerveja é servida —, famílias, idosos e jovens convivem naturalmente, trazendo sua própria comida, como permite a lei bávara.

A cerveja, diz Andreas, “é o lubrificante social: um elo comunitário que faz parte da vida cotidiana. “As pessoas se encontram, conversam, dividem mesas com desconhecidos. É uma tradição viva”.

Henrique comenta que, no Brasil, ainda há um certo tabu em ver idosos bebendo cerveja em público, um contraste que mostra como o consumo, em Bamberg, é tratado com naturalidade e pertencimento cultural.

O trabalho de pesquisa e o futuro dos estilos históricos

Krennmair dedica boa parte de seu tempo à pesquisa em arquivos digitais e bibliotecas alemãs e austríacas. Ele usa ferramentas como Google Books, Internet Archive e HathiTrust, além de visitar o centro de pesquisa VLB Berlin, que abriga um dos maiores acervos técnicos de cerveja do mundo.

Seu próximo livro será dedicado às cervejas de trigo bávaras (Weizenbier, Hefeweizen), explorando desde as origens até as práticas modernas de produção. O lançamento está previsto para 2026.

Autopublicado pela Amazon, ele prefere ter controle total sobre o conteúdo e o cronograma: “Não dá para ficar rico escrevendo sobre história da cerveja, mas dá para financiar boas viagens e inspirar outras pessoas”.

Conclusão: preservar o passado para entender o presente

A conversa entre Henrique e Andreas Krennmair revela mais do que uma aula de história: é um manifesto pela preservação da diversidade cervejeira. De estilos esquecidos à resistência cultural de Bamberg, o episódio mostra que tradição e inovação podem coexistir. Cada método, malte e receita carrega um pedaço da memória coletiva da cerveja.

Como conclui Krennmair, “se eu consegui descobrir tudo isso apenas lendo e testando, qualquer um pode fazer o mesmo.

E é exatamente esse espírito — curioso, histórico e artesanal — que mantém viva a chama do verdadeiro craft alemão.

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