#301 – A Hora Ácida: sua Saison pode ser selvagem!

Sua Saison Pode Ser Selvagem: fermentações mistas, selvagens e o renascimento do estilo

Mais um episódio da série A Hora Ácida, em que Henrique Boaventura e Diego Simão, da Cozalinda, aprofundam questões sobre fermentação e nacionalização de modos de produzir. A vez é das Saisons.

Papo de alto nível, que conta com a parceria da Hops Company, da Levteck, da EZbrew e da Cerveja Stannis.

A Saison brasileira e suas limitações

A discussão começa com um diagnóstico direto: o Brasil ainda não está acostumado com Saisons! E, quando elas estão disponíveis, geralmente são versões modernas, “domesticadas”, que perdem parte da complexidade das originais belgas e francesas. Henrique Boaventura e Diego Simão concordam: a maioria das Modern Saisons nacionais é “boring”, unidimensional e excessivamente doce.

O problema, segundo Diego, nasce do medo de trabalhar com microrganismos não convencionais em ambientes industriais. Isso leva os produtores a evitarem fermentações mais complexas, optando por cepas seguras, previsíveis e menos atenuativas. O resultado são cervejas limpas, mas sem o caráter rústico e a secura intensa das Saisons tradicionais, como a lendária Saison Dupont ou as criações da Fantôme.

O doce que não deveria estar lá

Henrique cita um exemplo marcante: uma Saison brasileira feita em colaboração pela Cervejaria Wäls que, apesar de criativa, apresentava um dulçor excessivo. Para ele, isso reflete uma tendência nacional de produzir cervejas “para agradar”, mais doces do que os exemplares clássicos europeus. Diego complementa que essa diferença vem da falta histórica de acesso a leveduras diastáticas, responsáveis pela atenuação extrema típica das Saisons belgas.

Essas cepas secretam enzimas que quebram açúcares complexos, permitindo fermentações profundas e perfis extremamente secos. Sem elas, as versões nacionais acabam com corpo residual alto, disfarçando o amargor e eliminando a refrescância que deveria ser a marca do estilo.

Diastáticos e o medo da contaminação

A dupla aprofunda o tema das leveduras diastáticas, especialmente as Saccharomyces cerevisiae var. diastaticus. Essas leveduras são vistas como inimigas em muitas fábricas por sua capacidade de escapar do controle e “invadir” outras produções. Porém, Henrique e Diego lembram que são justamente elas que definem o DNA das Saisons. Elas garantem a alta atenuação, a secura final e o perfil frutado-condimentado característico.

Diego ressalta que, em equilíbrio com uma leve acidez e amargor assertivo, a Saison atinge seu ponto máximo: uma cerveja seca, refrescante e complexa. Esse equilíbrio fino, entre acidez, funk e amargor, é o que separa uma Saison clássica de uma Modern Saison sem graça.

BJCP, BA e a interpretação dos Guias

Para situar a discussão, Henrique compara os descritivos dos guias BJCP e Brewers Association (BA). Segundo o BJCP, a Saison é uma Ale belga altamente atenuada, seca, lupulada, carbonatada e complexa, com notas frutadas e fenólicas. O BA, por outro lado, é mais permissivo, aceitando leves traços de Brettanomyces e acidez, abrindo espaço para interpretações mais “selvagens”.

Diego pontua que, mesmo nas versões mais tradicionais, o uso de Brett e acidez lática nunca foi incomum. O problema, diz ele, é que os guias modernos tentaram “encaixotar” o estilo, criando confusão entre o clássico e o contemporâneo. Ele propõe que se fale em dois mundos: as boring saisons e as verdadeiras saisons, as que mantêm o espírito rústico, seco e assertivo.

Fermentação mista: a ponte entre o controle e o selvagem

Ao entrar no aspecto técnico, Diego explica que é totalmente possível fazer uma Saison com fermentação mista, combinando Saccharomyces, Brettanomyces e bactérias láticas. Nesse cenário, o controle da acidez e da rusticidade é obtido de duas formas principais:

  1. Controle da Bretanomyces
    • Reduzindo a quantidade de açúcares complexos no mosto (menos “alimento” disponível).
    • Selecionando cepas com perfis específicos:
      • B1: mais cítrica e abacaxi.
      • B3: mais funk e couro.
  2. Controle da Acidez
    • Uso de amargor moderado a alto, já que os alfa-ácidos do lúpulo inibem bactérias.
    • Controle de temperatura de fermentação: mais fria no início, como faziam os belgas, para restringir a ação bacteriana.

Essas estratégias permitem que o cervejeiro explore a complexidade da fermentação mista sem perder o controle sensorial, alcançando equilíbrio entre acidez, funk e secura.

Fermentação selvagem: liberdade com guard rails

O ponto alto do episódio é a defesa de que uma Saison pode, sim, ser selvagem, desde que o cervejeiro saiba criar “guard rails” técnicos.

Na fermentação selvagem, os micro-organismos vêm do ambiente natural, e não de laboratórios. Isso a diferencia da mista, onde há inoculação deliberada. No entanto, selvagem não é sinônimo de caos.

Como explica Diego, o cervejeiro pode desenhar um mosto que favoreça leveduras selvagens atenuativas, garantindo previsibilidade mínima:

  • Açúcares simples predominam, garantindo secura.
  • Amargor alto controla bactérias indesejáveis.
  • Ambientes não madeirados (PP, inox) podem ser usados, já que a madeira é apenas uma fonte de oxigênio e microrganismos, não uma regra.

O resultado é uma Saison com expressão local, um “terroir microbiano” brasileiro, mantendo equilíbrio técnico e liberdade criativa.

Saison selvagem brasileira: o Projeto Sem Ferrão

O episódio se encerra com o Projeto Saison Sem Ferrão, desenvolvido pela Cozalinda, Yarun Fermentados e Fermentaria Local. A iniciativa explora abelhas sem ferrão brasileiras como fonte de micro-organismos para fermentações espontâneas. O método consiste em deixar mel e pólen fermentarem naturalmente, capturando leveduras selvagens do ambiente. Essas culturas são então usadas na produção de Saisons com rusticidade leve, acidez sutil e alta drinkability.

O resultado impressiona: Diego relata que uma das cervejas, a Mirim Droryana, apresentou perfil idêntico à Saison Dupont, com acidez equilibrada, secura e leve funk. A validação veio da sommelier Daiane Colla, referência em cervejas belgas, que elogiou a precisão da interpretação.

Outras cervejarias, como Yarun Meliponina e Dádiva, também têm explorado esse caminho, criando um novo horizonte para a Saison brasileira: selvagem, mas domada.

Conclusão: o futuro selvagem das Saisons

Ao mostrarem que o selvagem pode ser técnico, previsível e elegante, Henrique e Diego ajudam, neste episódio, a desconstruir o medo do desconhecido e a resgatar a essência do estilo: fermentação viva, complexa e local.

A Saison brasileira do futuro não precisa copiar a Bélgica. Pode nascer das abelhas, das leveduras nativas e do amargor tropical. Entre o controle da ciência e a liberdade da natureza, a verdadeira arte da Saison está em saber onde colocar as cercas, sem tirar o espírito do campo.

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