A English Barleywine não é vinho, não é chope de vinho e certamente não é para os fracos de coração. Neste episódio do Brassagem Forte, Henrique Boaventura recebe Beto Tempel, cervejeiro e fundador da Cervejaria Trilha, para um mergulho profundo no estilo English Barleywine — desde suas origens históricas até técnicas modernas de produção. O resultado? Um verdadeiro tratado técnico sobre um dos estilos mais nobres e complexos da escola inglesa.
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Origem e evolução do estilo
Beto e Henrique iniciam contextualizando a English Barleywine como herdeira direta das tradicionais Burton Ales. Essas cervejas inglesas do século XIX eram potentes, envelhecidas e muito alcoólicas, o que as aproximava do status de “vinho de cevada”. A denominação “Barleywine” surgiu por volta de 1872, e, ao longo do século XX, o estilo foi se consolidando com menos densidade, mas mantendo o caráter robusto.
Com o tempo, a Barleywine passou a ser confundida com outras Strong Ales, como as Old Ales, e o BJCP decidiu separá-las com base principalmente no envelhecimento e características sensoriais derivadas.
Perfil sensorial segundo o BJCP (17D)
Aroma
- Maltado, rico e com notas de caramelo (em versões escuras) e toffee (nas claras).
- Frutado moderado a forte, com notas de frutas secas e escuras.
- Lúpulo floral, terroso ou de marmelada, de baixo a assertivo.
- Álcool perceptível, suave, nunca agressivo.
Aparência
- De âmbar dourado a marrom escuro, nunca preta.
- Colarinho quase branco, baixo a moderado, com baixa retenção.
- Pode apresentar “lágrimas” pela viscosidade.
Sabor
- Dulçor médio a alto, com complexidade de malte (pão, biscoito, frutas secas).
- Amargor entre 35 e 70 IBU, equilibrando o dulçor.
- Final de médio-seco a médio-doce, com possível presença de notas vínicas ou oxidativas com o envelhecimento.
Sensação na boca
- Corpo alto, textura aveludada e aquecimento alcoólico suave.
- Carbonatação baixa a moderada.
Produção: filosofia, malteação e envelhecimento
Beto é enfático: Barleywine deve ser complexa. Ele opta por grists variados, sempre incluindo maltes caramelos (25, 50, 75 e até 400), maltes aromáticos, como biscuit, e castanhos, e o indispensável malte Melanoidina — essencial para criar precursores de envelhecimento como o furfural.
Envelhecimento
Na Trilha, nenhuma Barleywine é lançada jovem. O período de guarda varia entre 10 a 24 meses. Para Beto, o tempo é o grande diferencial que confere profundidade e sofisticação ao estilo.
A escolha dos lúpulos: foco no amargor, não no aroma
O lúpulo, para Beto, serve como contraponto ao dulçor. Ele privilegia lúpulos ingleses clássicos como East Kent Goldings e Fuggles, sempre em adições iniciais para amargor. Um cuidado técnico relevante é evitar variedades com altos níveis de beta-ácidos, que se preservam com o tempo e podem gerar sabores indesejáveis.
Levedura e fermentação
Levedura
A única levedura que Beto utiliza para suas English Barleywines é a S-04, pela boa esterificação e performance em envelhecimento. Ele destaca a importância do pitch rate elevado (1.2 a 1.5 milhões de células/ml/°P) para garantir uma fermentação saudável.
Fermentação
- Temperatura de fermentação: 18 °C para reduzir álcoois superiores.
- Fermentação sob leve pressão (~0,5 bar) com válvula de alívio.
- Oxigenação: 3 L/min durante o pitching, visando uma longa fase de adaptação.
Tratamento da água
O perfil de água usado na Trilha para Barleywines privilegia o maltado:
- Cálcio: ~100 ppm
- Magnésio: ~10–12 ppm
- Sódio: ~80 ppm (levanta dulçor, sem salgar)
- Cloreto: ~240–250 ppm
- Sulfato: metade do cloreto (relação 2:1)
Mosturação e fervura
Temperaturas
- Beta-glucanase: 3 min a 45 °C (melhor filtração)
- Sacarificação:
- 45 min a 68 °C
- 20 min a 72 °C
- Mash-out e fervura de 90 a 120 minutos
Objetivo
Preservar dextrinas e alcançar um mosto com até 31°P (OG: 1.134), resultando em cervejas com FG em torno de 1.044 (11°P) e teor alcoólico elevado, mas equilibrado com amargor.
Receita base: Barleywine “Bunker” da Trilha
Grain bill
- 59% Pale Ale
- 6% Caramel Aromatic
- 10% Melanoidina
- 1% Cristal 400
- 11% Cristal 25
- 11% Cristal 50
- Aromáticos (biscuit, barley loaf) em quantidades variáveis
Lúpulo
- East Kent Goldings (~40 IBUs)
Fermentação
- Levedura S-04
- Pitching rate: 1.2–1.5 mi células/ml/°P
- Temperatura: 18 °C
- Fermentação sob leve pressão
Água
- Perfil maltado (cloreto > sulfato)
Densidades
- OG: 1.134
- FG: ~1.044
- ABV estimado: 11–12%
Experimentações e inovação com enzimas
Nos últimos anos, Beto vem testando receitas com apenas 20% de malte base, complementando a conversão enzimática com enzimas exógenas. Isso permitiu usar grandes quantidades de maltes especiais e cristal sem comprometer a fermentação — uma abordagem ousada que desafia os limites do estilo, mas com resultados sensoriais incríveis.
Conclusão
English Barleywine é, nas palavras de Beto, “talvez o estilo mais complexo que temos fora do universo das cervejas ácidas”. Produzi-la exige técnica, paciência, bom senso e uma pitada de ousadia. Entre escolas clássicas e novas possibilidades, o que se mantém é a busca pela profundidade de sabor, elegância no envelhecimento e respeito pelo tempo.
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