#288 – Brassando com Estilo: English Barleywine

A English Barleywine não é vinho, não é chope de vinho e certamente não é para os fracos de coração. Neste episódio do Brassagem Forte, Henrique Boaventura recebe Beto Tempel, cervejeiro e fundador da Cervejaria Trilha, para um mergulho profundo no estilo English Barleywine — desde suas origens históricas até técnicas modernas de produção. O resultado? Um verdadeiro tratado técnico sobre um dos estilos mais nobres e complexos da escola inglesa.

Não perca mais esse papo de altíssimo nível, que conta com a parceria da Lamas Brewshop, da Hops Company, da Levteck e da Cerveja Stannis.

Origem e evolução do estilo

Beto e Henrique iniciam contextualizando a English Barleywine como herdeira direta das tradicionais Burton Ales. Essas cervejas inglesas do século XIX eram potentes, envelhecidas e muito alcoólicas, o que as aproximava do status de “vinho de cevada”. A denominação “Barleywine” surgiu por volta de 1872, e, ao longo do século XX, o estilo foi se consolidando com menos densidade, mas mantendo o caráter robusto.

Com o tempo, a Barleywine passou a ser confundida com outras Strong Ales, como as Old Ales, e o BJCP decidiu separá-las com base principalmente no envelhecimento e características sensoriais derivadas.

Perfil sensorial segundo o BJCP (17D)

Aroma

  • Maltado, rico e com notas de caramelo (em versões escuras) e toffee (nas claras).
  • Frutado moderado a forte, com notas de frutas secas e escuras.
  • Lúpulo floral, terroso ou de marmelada, de baixo a assertivo.
  • Álcool perceptível, suave, nunca agressivo.

Aparência

  • De âmbar dourado a marrom escuro, nunca preta.
  • Colarinho quase branco, baixo a moderado, com baixa retenção.
  • Pode apresentar “lágrimas” pela viscosidade.

Sabor

  • Dulçor médio a alto, com complexidade de malte (pão, biscoito, frutas secas).
  • Amargor entre 35 e 70 IBU, equilibrando o dulçor.
  • Final de médio-seco a médio-doce, com possível presença de notas vínicas ou oxidativas com o envelhecimento.

Sensação na boca

  • Corpo alto, textura aveludada e aquecimento alcoólico suave.
  • Carbonatação baixa a moderada.

Produção: filosofia, malteação e envelhecimento

Beto é enfático: Barleywine deve ser complexa. Ele opta por grists variados, sempre incluindo maltes caramelos (25, 50, 75 e até 400), maltes aromáticos, como biscuit, e castanhos, e o indispensável malte Melanoidina — essencial para criar precursores de envelhecimento como o furfural.

Envelhecimento

Na Trilha, nenhuma Barleywine é lançada jovem. O período de guarda varia entre 10 a 24 meses. Para Beto, o tempo é o grande diferencial que confere profundidade e sofisticação ao estilo.

A escolha dos lúpulos: foco no amargor, não no aroma

O lúpulo, para Beto, serve como contraponto ao dulçor. Ele privilegia lúpulos ingleses clássicos como East Kent Goldings e Fuggles, sempre em adições iniciais para amargor. Um cuidado técnico relevante é evitar variedades com altos níveis de beta-ácidos, que se preservam com o tempo e podem gerar sabores indesejáveis.

Levedura e fermentação

Levedura

A única levedura que Beto utiliza para suas English Barleywines é a S-04, pela boa esterificação e performance em envelhecimento. Ele destaca a importância do pitch rate elevado (1.2 a 1.5 milhões de células/ml/°P) para garantir uma fermentação saudável.

Fermentação

  • Temperatura de fermentação: 18 °C para reduzir álcoois superiores.
  • Fermentação sob leve pressão (~0,5 bar) com válvula de alívio.
  • Oxigenação: 3 L/min durante o pitching, visando uma longa fase de adaptação.

Tratamento da água

O perfil de água usado na Trilha para Barleywines privilegia o maltado:

  • Cálcio: ~100 ppm
  • Magnésio: ~10–12 ppm
  • Sódio: ~80 ppm (levanta dulçor, sem salgar)
  • Cloreto: ~240–250 ppm
  • Sulfato: metade do cloreto (relação 2:1)

Mosturação e fervura

Temperaturas

  • Beta-glucanase: 3 min a 45 °C (melhor filtração)
  • Sacarificação:
    • 45 min a 68 °C
    • 20 min a 72 °C
  • Mash-out e fervura de 90 a 120 minutos

Objetivo

Preservar dextrinas e alcançar um mosto com até 31°P (OG: 1.134), resultando em cervejas com FG em torno de 1.044 (11°P) e teor alcoólico elevado, mas equilibrado com amargor.

Receita base: Barleywine “Bunker” da Trilha

Grain bill
  • 59% Pale Ale
  • 6% Caramel Aromatic
  • 10% Melanoidina
  • 1% Cristal 400
  • 11% Cristal 25
  • 11% Cristal 50
  • Aromáticos (biscuit, barley loaf) em quantidades variáveis
Lúpulo
  • East Kent Goldings (~40 IBUs)
Fermentação
  • Levedura S-04
  • Pitching rate: 1.2–1.5 mi células/ml/°P
  • Temperatura: 18 °C
  • Fermentação sob leve pressão
Água
  • Perfil maltado (cloreto > sulfato)
Densidades
  • OG: 1.134
  • FG: ~1.044
  • ABV estimado: 11–12%

Experimentações e inovação com enzimas

Nos últimos anos, Beto vem testando receitas com apenas 20% de malte base, complementando a conversão enzimática com enzimas exógenas. Isso permitiu usar grandes quantidades de maltes especiais e cristal sem comprometer a fermentação — uma abordagem ousada que desafia os limites do estilo, mas com resultados sensoriais incríveis.

Conclusão

English Barleywine é, nas palavras de Beto, “talvez o estilo mais complexo que temos fora do universo das cervejas ácidas”. Produzi-la exige técnica, paciência, bom senso e uma pitada de ousadia. Entre escolas clássicas e novas possibilidades, o que se mantém é a busca pela profundidade de sabor, elegância no envelhecimento e respeito pelo tempo.

Para quem quiser mergulhar ainda mais nesse universo, a Trilha oferece cursos especializados em produção de cervejas extremas — uma extensão natural de quem vive e respira inovação com os pés firmes na tradição.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *