#289 – A Hora Ácida: infusão de sementes e folhas em cervejas ácidas

#289 - A Hora Ácida: infusão de sementes e folha em cervejas ácidas

Infusão de sementes e folhas em cervejas ácidas: técnicas, riscos e possibilidades

Cervejas ácidas complexas e o papel das infusões artesanais

Cervejas ácidas complexas representam um dos campos mais criativos da cerveja artesanal. Neste episódio do Brassagem Forte, dando continuidade à série A Hora Ácida, Henrique Boaventura e Diego Simão, cervejeiro da Cozalinda, discutem técnica e sensorial no uso de infusões de sementes e folhas — um recurso que amplia o perfil aromático das cervejas sem mascarar sua base.

Uma conversa imperdível, de altíssimo nível, ampliando os horizontes possíveis do fazer cervejeiro, e que conta com a parceria da Lamas Brewshop, da Hops Company, da Levteck e da Cerveja Stannis.

Infusão em cerveja: o que é e como funciona

Infusão, no contexto cervejeiro, é a adição de ingredientes brutos — como folhas secas ou sementes aromáticas — à cerveja já fermentada. De modo que se difere de adições em fervura ou maturação precoce. O objetivo é extrair compostos sensoriais delicados sem comprometer o perfil da cerveja ácida ou selvagem.

Quando e como aplicar a infusão: timing é tudo

O processo de infusão deve ocorrer após a fermentação primária. Ingredientes como folhas de chá, sementes e especiarias devem ser adicionados na fase de maturação, com a cerveja já estabilizada. Isso reduz o risco de contaminações e evita que microrganismos alterem o perfil desejado.

Folhas e sementes podem conter microrganismos indesejados. Mesmo em cervejas selvagens, é necessário cuidado para que a adição não introduza contaminações ou sabores agressivos como adstringência e taninos. O segredo está em conhecer o ingrediente e testar sua interação com a base.

Base sólida, infusão segura: conheça sua cerveja antes de adicionar

Diego enfatiza: “Não adianta infundir se a base não é sólida.” Cada cerveja ácida tem um perfil único. Na Cozalinda, por exemplo, a Praia do Meio tem acidez cítrica leve — ideal para infusões como hortelã ou capim-limão. Já a Pedras de Itaguaçu, com perfil funky, permite ousadias mais complexas. A chave é respeitar o equilíbrio.

Gastronomia como guia: ingredientes que funcionam

Insumos culinários são uma ótima referência para cervejas infusionadas. Amburana, cumaru, chá preto defumado, hortelã e erva-doce são ingredientes que já demonstraram bons resultados. A recomendação é testar primeiro em pratos ou infusões caseiras antes de aplicar na brassagem.

A técnica da infusão a frio

A infusão a frio, diretamente na cerveja, é o método preferido por Diego. A temperatura ambiente favorece a extração gradual. O tempo de contato varia conforme o ingrediente — a semente de amburana, por exemplo, exige menos de uma semana para evitar excesso de taninos. Tudo é empírico: testar e acompanhar são partes essenciais do processo! ✅

Planejamento e blends: erros acontecem, corrija no corte

Mesmo com planejamento, é fácil errar na dosagem. Por isso, o segredo está em sempre produzir mais cerveja do que o necessário. Isso permite fazer blends, combinando diferentes lotes para ajustar corpo, acidez, intensidade e reduzir defeitos sensoriais.

Tinturas alcoólicas: solução temporária ou risco no longo prazo?

Tinturas podem ser úteis para testes, mas não substituem a infusão direta em cervejas com envelhecimento longo. ❌

Isso porque elas tendem a perder intensidade sensorial com o tempo. O ideal, portanto, é usar a tintura apenas como estudo de viabilidade antes de aplicar o insumo real.

Mixologia, contraste e criatividade: onde buscar combinações novas

A mixologia — o estudo e arte de fazer drinques — desbrava muitos insumos aplicados a coquetéis, através de técnicas diversas. Isso inspira, também para a produção cervejeira, combinações “inusitadas”, como laranja e balsâmico, hortelã e abacaxi, ou canela com frutas amarelas.

O segredo, como também se faz na mixologia, é pensar como na culinária: identificar o perfil dominante da cerveja e trabalhar complementos ou contrastes que criem novas camadas de sabor.

Afinal, cerveja também é gastronomia!

Cuidado no envase: refermentação controlada é fundamental

Na etapa de envase, as cervejas ácidas e selvagens exigem atenção por conta da refermentação. O uso de leveduras neutras, propagadas previamente, evita que microrganismos remanescentes alterem o resultado final. O controle microbiológico na garrafa garante estabilidade sensorial no longo prazo.

Conclusão: arte, paciência e precisão técnica

Infusões em cervejas ácidas complexas não seguem fórmulas prontas. Elas exigem domínio técnico, paciência para testes e sensibilidade para equilíbrio sensorial. A experiência da Cozalinda mostra que, quando bem executadas, essas infusões de folhas e sementes podem transformar cervejas em obras únicas, conectando a produção à gastronomia e ao terroir brasileiro.

Arrisque-se, teste e se surpreenda!

#287 – LODO: cerveja com baixo teor de oxigênio dissolvido

LODO

LODO na cerveja: técnicas para lagers claras com mais frescor e estabilidade

Você sabe o que é LODO na cerveja? A sigla vem do inglês Low Dissolved Oxygen — ou baixo oxigênio dissolvido — e se refere a um conjunto de práticas que visam reduzir ao máximo o contato da cerveja com oxigênio durante o processo de produção.

Neste episódio do Brassagem Forte, Henrique Boaventura conversa com o mestre cervejeiro Marcus Dapper sobre como aplicar essas técnicas para melhorar o frescor, estabilidade sensorial e shelf life das cervejas lager claras.

Não perca esse papo incrível, que conta com a parceria da Lamas Brewshop, da Hops Company, da Levteck e da Cerveja Stannis.

Origem e filosofia do LODO na cerveja

Muito antes de existirem oxímetros precisos, cervejarias alemãs já aplicavam práticas que limitavam o oxigênio dissolvido no processo de produção. Mesmo sem saber, adotavam procedimentos que hoje são a base do LODO.

A Lei da Pureza Cervejeira alemã (Reinheitsgebot), apesar de limitar os ingredientes, impulsionou o desenvolvimento técnico. Isso criou uma cultura de precisão que hoje influencia desde equipamentos até as boas práticas de fabricação no mundo todo.

LODO serve para todos os estilos?

Segundo Dapper, LODO só faz sentido em lagers claras e com até 5% de teor alcoólico, como Helles, German Pils, Oktoberfest ou Vienna Lager. Estilos mais escuros ou com maior carga de maltes especiais têm outras características sensoriais nas quais o oxigênio exerce menor influência.

Técnicas LODO: como aplicar na sua cerveja

A prática do LODO é uma soma de pequenas ações que, juntas, garantem uma cerveja mais estável e fresca. Não se trata de adotar uma técnica isolada, mas sim um processo integrado:

  • Ferver a água de mostura previamente para expulsar oxigênio;
  • Moer o malte imediatamente antes do uso;
  • Evitar agitação excessiva na mostura;
  • Reduzir a carga térmica na fervura;
  • Resfriamento e envase sem contato com o ar;
  • Utilizar levedura saudável ou maior pitch para evitar oxigenação do mosto frio.

O impacto do oxigênio na parte quente do processo

A parte quente da produção (mostura e fervura) é crítica na formação de precursores da oxidação, como o trans-2-nonenal (notas de papelão). Assim, o controle de oxigênio e de temperatura da fervura são essenciais para minimizar a liberação de compostos que afetam o shelf life da cerveja.

Medição de oxigênio: limite técnico para o caseiro

Na parte fria, grandes cervejarias já conseguem controlar níveis de oxigênio na faixa de 2 a 8 ppb, graças a equipamentos de alta precisão. Para o cervejeiro caseiro ou artesanal, a medição da parte quente ainda é inviável, mas adotar práticas como menor tempo de fervura com maior eficiência térmica já ajuda a evitar a formação de precursores.

Fervura, DMS e desempenho enzimático

  • Para eliminar DMS, 20–25 minutos de fervura vigorosa são suficientes.
  • A coagulação proteica e isomerização do lúpulo exigem fervuras mais longas (40–45 min).
  • A agitação controlada da mostura acelera reações enzimáticas e pode permitir tempos mais curtos sem comprometer a conversão do amido.

Fermentação e oxigênio: mito ou necessidade?

É possível fermentar com mínima oxigenação do mosto, principalmente usando leveduras secas bem manejadas ou fazendo um pitch maior. A velocidade com que a levedura consome oxigênio na parte fria é alta o suficiente para minimizar riscos de oxidação sensorial.

O que vale a pena fazer no modo caseiro?

Para quem faz cerveja em casa, Dapper recomenda:

✅ Focar na qualidade da fervura;
✅ Reduzir a carga térmica;
✅ Usar malte fresco;
✅ Minimizar a exposição ao ar na fermentação e envase;
❌ Evitar exageros como moagem com CO₂ ou inertização de panela na mostura.

Conclusão: LODO faz sentido?

Sim! Para Marcus Dapper, com décadas de experiência em grandes cervejarias, LODO é uma abordagem técnica legítima e eficaz para produzir cervejas lager com frescor e estabilidade sensorial superiores. Mas é preciso aplicá-lo com equilíbrio e conhecimento — e não como uma obsessão por eliminar cada ppm de oxigênio.

“Fazer cerveja excelente é uma soma de detalhes. E LODO é o detalhe que faz a diferença na lager clara”, diz Dapper.

#286 – Cerveja dentro do orçamento

Cerveja dentro do orçamento

Como fazer cerveja caseira de baixo custo: técnicas, insumos e equipamentos

Fazer cerveja em casa pode parecer um luxo, mas, como diria Leandro Oliveira: “não fazer cerveja é muito caro”.

Neste episódio do Brassagem Forte, Leandro, do canal Cerveja Fácil, e Henrique Boaventura mostram que é possível produzir cerveja artesanal de qualidade sem gastar demais.

Com a parceria da Lamas Brewshop, da Hops Company, da Levteck e da Cerveja Stannis, aprenda técnicas, dicas e receitas para turbinar sua produção caseira — com o orçamento sob controle.

O mito da cerveja caseira barata

Durante anos, ouviu-se que fazer cerveja em casa era mais barato do que comprar. E é — se você souber como. Embora existam custos implícitos como gás, água, energia e tempo, o grande segredo está em como planejar, otimizar insumos e evitar armadilhas.

O que encarece a produção caseira?

Investir em equipamentos sofisticados logo de cara pode transformar seu hobby em um ralo de dinheiro. Muitos iniciantes acreditam que a qualidade está no inox, quando, na verdade, ela está no controle dos processos.

Equipamentos Essenciais para Fazer Cerveja Gastando Pouco

Segundo Leandro, o setup básico para fazer cerveja de baixo custo inclui:

  • Geladeira com controlador de temperatura
  • Panela com cesto ou BIAB
  • Fermentador (bombona ou balde)
  • Barril e cilindro de CO₂
  • Fogão ou fogareiro
  • Densímetro

Com isso, você já consegue fazer cervejas incríveis — sem gastar uma fortuna.

Leveduras e lúpulos: como criar receitas de cerveja caseira mais baratas

Evite complexidade desnecessária! Foque em receitas com menos insumos, controle de temperatura e reaproveitamento de levedura. Um único pacote pode render cinco ou mais levas, economizando até R$20 por receita.

No quesito lúpulo, troque o hype por eficiência. Economize sem perder os aromas desejados. Então use:

  • Magnum para amargor
  • Whirlpool e dry hopping para extração aromática
  • Lúpulo brasileiro fresco, que pode render 30% mais aroma com menos quantidade

O valor dos adjuntos na redução de custos

Milho em flocos é um aliado poderoso! Ele reduz custo e mantém o corpo, quando combinado com maltes especiais e rampas altas de mostura (70–72 °C). Com conhecimento técnico, é possível utilisar até 70% de adjuntos e fazer cervejas saborosas, com excelente drinkability.

Estilos ideais para produção econômica

  • Ordinary Bitter (até R$1,89/litro)
  • Helles com milho
  • Vienna Lager contemporânea
  • Session IPAs
  • Pale Ales com dry hopping moderado

Cervejas com teor alcoólico reduzido também consomem menos insumo — e entregam muito.

Dicas de ouro para comprar insumos mais baratos

  • Compre em grupo e divida o frete
  • Faça parcerias com cervejarias locais
  • Aproveite insumos descartados, como lama de levedura
  • Evite compras fracionadas — compre por saco, sempre que possível

Conclusão: planejamento é o segredo da boa e barata cerveja caseira

Produzir cerveja de baixo custo não é sinônimo de cerveja ruim. Com técnica, planejamento e escolhas inteligentes, é possível criar cervejas frescas, aromáticas e complexas por menos de R$3 o litro. E mais do que isso: é libertador poder dizer que “não fazer cerveja é que sai caro”.

#285 – A Hora Ácida: Lachancea thermotolerans brasileira

A Hora Ácida #285

Lachancea thermotolerans brasileira: a levedura selvagem que transforma a produção de cervejas ácida. Uma linhagem coletada na floresta amazônica promete inovação, controle de acidez e identidade brasileira para cervejarias artesanais.

Não perca mais este papo no Brassagem Forte, com a participação de Isabel Sabino e Diego Simão, e a parceria da Lamas Brewshop, da Hops Company, da Levteck e da Cerveja Stannis.

De pesquisadora a cervejeira: quem é Isabel Sabino

A bióloga Isabel Sabino iniciou sua trajetória com fungos da Antártida e, durante o doutorado, migrou para o estudo de leveduras. Sua experiência em microbiologia encontrou a prática na Cervejaria Verace, onde iniciou pesquisas sobre fermentação ácida com Lachancea thermotolerans. O foco era buscar uma levedura brasileira capaz de acidificar o mosto durante a fermentação, sem o uso de bactérias.

Por que a coleta de leveduras selvagens é importante

Coletar leveduras da natureza permite explorar o potencial biotecnológico de micro-organismos adaptados a ambientes específicos. A biodiversidade do Brasil oferece oportunidades únicas: espécies pouco estudadas podem revelar soluções para a produção de alimentos, bebidas e outros insumos industriais. A Lachancea thermotolerans foi isolada a partir da casca de uma árvore, revelando-se promissora para a produção de cervejas ácidas.

Como a Lachancea thermotolerans foi coletada na floresta amazônica

A coleta ocorreu em 2016, com apoio do Museu Emílio Goeldi. Casca de árvore foi colocada em meio líquido contendo rafinose e etanol, para selecionar leveduras menos comuns e tolerantes. A amostra foi processada rapidamente e armazenada no banco de microrganismos da UFMG, que hoje contém mais de 50 mil isolados. A linhagem brasileira da Lachancea thermotolerans foi obtida dessa coleta.

Da placa de Petri ao laboratório: desenvolvimento da levedura

A linhagem passou por triagens fisiológicas, testes de segurança e fermentações piloto. Ela demonstrou:

  • Atenuação de até 72%
  • Produção de 6 g/L de ácido lático
  • Alta floculação
  • Tolerância ao álcool de até 6%
  • Redução de pH para 3,8 em 24h

Produz também ácidos cítrico, málico, succínico e acético, conferindo uma acidez mais complexa e equilibrada — ideal para cervejas ácidas como Catharina Sour.

Perfil sensorial e potencial para cervejas ácidas

Durante os testes, a Lachancea thermotolerans brasileira apresentou:

  • Aromas florais (2-feniletanol), frutas brancas e mel
  • Acidez perceptível, porém suave
  • Sabor com equilíbrio entre dulçor residual e acidez
  • Potencial para fermentações com frutas brasileiras

O perfil sensorial foi descrito como próximo ao de um vinho branco, com notas de pera, uva verde e rosas.

Parâmetros técnicos da fermentação com a Lachancea brasileira

  • Temperatura ideal: 22 °C
  • Mosto: malte pilsen e caramelo, 8 IBU
  • Carbonatação: na garrafa
  • Tempo de acidificação: 24h para pH ~3,8
  • Atenuação: até 72%
  • Consumo parcial de maltose e maltotriose
  • Tolerância ao álcool: até 6%
  • Floculação: alta

A levedura ainda não teve sua tolerância a altos níveis de lúpulo totalmente estabelecida, mas os testes indicam bom desempenho até 10 IBU.

Aplicações práticas e recomendações para uso

Ideal para cervejarias que buscam praticidade, controle microbiológico e inovação, essa levedura permite a produção de cervejas ácidas sem uso de bactérias. Recomenda-se:

  • Mosturação que favoreça açúcares simples
  • Fermentação isolada, sem cofermentação inicial
  • Testes sensoriais antes da adição de frutas ou adjuntos

É uma excelente alternativa para Catharina Sour e outros estilos frutados, entregando equilíbrio e complexidade sem complicações no processo.

Comercialização e o futuro das leveduras nacionais

A Lachancea thermotolerans brasileira será comercializada pelo Laboratório da Cerveja, em parceria com a UFMG, após finalização do licenciamento. A expectativa é que cervejeiros caseiros e profissionais tenham acesso a um produto nacional com alto potencial biotecnológico.

Isabel Sabino também aponta o desejo de aplicar a levedura em outras bebidas fermentadas como sidras, espumantes e vinhos com frutas brasileiras, além de continuar explorando linhagens nativas com características únicas.

Conclusão

A Lachancea thermotolerans brasileira simboliza o encontro entre ciência, biodiversidade e inovação cervejeira. Com sua capacidade de acidificar, fermentar e entregar complexidade sensorial, ela oferece uma alternativa segura, prática e com identidade nacional.

Mais do que uma nova levedura, trata-se de uma nova etapa para a biotecnologia cervejeira brasileira — capaz de impulsionar tanto pequenos produtores quanto a indústria nacional rumo a sabores únicos, sustentáveis e autênticos.

#283 – Brassando com Estilo: American Porter

American Porter

Como fazer uma American Porter: história, receita e guia completo do estilo

Neste episódio do Brassagem Forte, Henrique Boaventura recebeu Ingrid Matos para mergulhar na história e nos detalhes técnicos da American Porter, um estilo de cerveja escura que une a tradição britânica e a ousadia do lúpulo americano.

Com a parceria da Lamas Brewshop, da Hops Company, da Levteck e da Cerveja Stannis, você vai descobrir como fazer uma American Porter de forma precisa, com todos os detalhes discutidos por capacitadíssimos especialistas!

História da American Porter: Origens e Renascimento

A gênese e os blends históricos

A Porter nasceu na Inglaterra do século XVIII como a cerveja do trabalhador, popularizada pelos blends em pubs. Misturas de Mild Ale, Old Ale e Pale Ale criaram perfis únicos que chegaram até nós, mesmo que a gênese exata do estilo permaneça incerta.

O renascimento do estilo em versão americana

Em 1984, o renascimento da Porter na Inglaterra inspirou o surgimento das American Porters, marcadas por aroma e amargor de lúpulo em contraste com maltes torrados. Exemplos clássicos incluem Anchor Porter, Bells Porter e Deschutes Black Butte.

A American Porter segundo o BJCP

Impressão geral e perfil sensorial

  • Cerveja escura, maltada, com amargor médio a alto.
  • Aroma de chocolate, café leve, notas de caramelo ou toffee e presença opcional de ésteres frutados.
  • Aparência marrom escuro a preto, reflexos rubi, colarinho castanho.
  • Sabor equilibrado entre malte torrado e amargor, com final seco ou meio doce.

Parâmetros técnicos

  • OG: 1.050 a 1.070
  • FG: 1.012 a 1.018
  • Amargor: 25 a 50 IBU
  • Cor: 22 a 40 SRM
  • ABV: 4,8% a 6,5%

Maltes e construção do corpo

Maltes base, especiais e torrados

A base da receita inclui:

  • Malte Pilsen Agrária (88-89%)
  • Melanoidin (4-6%) para dulçor e cor rubi
  • Carafa 3 Special (~3%) para cor intensa e café
  • Malte Chocolate ou Carafa 2/Kestel para notas de chocolate.

Maltes caramelo até 10% podem ser usados para dulçor e frutas escuras, mas sem exageros para manter o equilíbrio.

Lúpulos na American Porter: contraste e equilíbrio

Escolha e adições de lúpulo

  • Lúpulos clássicos: Northern Brewer, Cascade, Goldings.
  • Ingrid recomenda Amarillo para notas de laranja que combinam com chocolate dos maltes.
  • Evite lúpulos muito intensos como Nelson Sauvin para não desequilibrar.
  • Amargor no início da fervura e aroma no whirlpool, sem exageros no dry hopping.

Fermentação e levedura para American Porter

Levedura ideal e perfil de fermentação

  • London Ale (Levitec) como levedura preferida por Ingrid: esterificação rica em frutas vermelhas.

Fermentação entre 18-20°C, garantindo complexidade sensorial e equilíbrio.

Ajustes de água e carbonatação

Perfil de água recomendado

  • Água levemente dura (50-100 ppm de cálcio) para ressaltar o malte.

Para quem não controla pH, adição dos maltes torrados no final da mostura ajuda a manter o equilíbrio.

Carbonatação no estilo

Carbonatação média a média-alta (2,5-2,7 volumes) para realçar aromas e manter o perfil clássico da American Porter.

Receita completa de American Porter

Ingredientes

  • Malte Pilsen Agrária (88-89%)
  • Melanoidin (~4-6%)
  • Carafa 3 Special (~3%)
  • Malte Chocolate ou Carafa 2/Kestel
  • Lúpulo amargor: Columbus, Magnum ou Galena
  • Lúpulo aroma: Amarillo no whirlpool (1 g/L)
  • Levedura: London Ale (Levitec), 18-20 °C
  • OG: 1.065-1.068 | FG: 1.008-1.010
  • IBU: 38-40 | ABV: 6-6,5%

Conclusão

A American Porter é um estilo que equilibra tradição e inovação, destacando-se pelo contraste entre malte torrado e lúpulo americano. Produzir essa cerveja exige atenção aos detalhes, honestidade com o estilo e paixão pela cerveja artesanal. Consuma, valorize e compartilhe — assim mantemos viva a cultura cervejeira!

#282 – Produzindo uma Hazy IPA sem álcool

Hazy IPA sem álcool

A produção de cervejas sem álcool tem ganhado cada vez mais espaço entre os cervejeiros caseiros e profissionais. A combinação entre técnica apurada, inovação sensorial e inclusão de novos perfis de consumidores transformou esse nicho em um dos mais promissores da cerveja artesanal.

Neste episódio do Brassagem Forte, Henrique Boaventura conversa com Tedesko Almeida, da Cervejaria Piwo (ES), sobre os desafios e soluções para criar uma Hazy IPA sem álcool com corpo, sabor e estabilidade — e o melhor: sem precisar de equipamentos industriais.

Com a parceria da Lamas Brewshop, da Hops Company, da Levteck e da Cerveja Stannis, acompanhe esse papo imperdível!

Por que produzir uma cerveja sem álcool artesanal?

De promessa caseira a tendência crescente

O primeiro lote da Hazy IPA sem álcool da Piwo nasceu de uma promessa do cervejeiro Tedesko à sua esposa grávida — uma grande apreciadora do estilo. A experiência doméstica foi tão bem-sucedida que se transformou em uma oportunidade de mercado. Em 2024, o setor sem álcool cresceu expressivamente no Brasil, com a Ambev registrando aumento de 20% nas vendas e a Heineken, 9%.

Novos públicos, novas possibilidades

As cervejas sem álcool permitem ampliar o consumo em ocasiões antes restritas, além de agradar quem busca baixo teor calórico, produtos mais saudáveis ou experiências sensoriais sem embriaguez. Tedesko resume bem: “É como reaprender a fazer cerveja”.

Qual estilo de cerveja é melhor para fazer sem álcool?

Hazy IPA: complexidade para compensar a falta de álcool

Estilos com perfil aromático intenso, como Hazy IPA, se mostram ideais para versões sem álcool. A complexidade de lúpulo e corpo permite mascarar a ausência de etanol, sem comprometer a experiência sensorial.

Outras opções promissoras

Estilos escuros e defumados, como Schwarzbier ou Grodziskie, também são boas alternativas. A dica é evitar cervejas extremamente limpas e leves, como as pilsners clássicas, que exigem precisão e equipamentos caros para entregar o mesmo resultado.

Como escolher a levedura certa para cerveja sem álcool?

LA-01 da Fermentis: o coração da fermentação

A Piwo utilizou a levedura LA-01 da Fermentis, que fermenta apenas açúcares simples, como glicose e frutose. Isso possibilita uma fermentação completa com baixa atenuação, sem precisar interromper o processo, o que evita sabores de mosto e garante estabilidade microbiológica.

Pitch e dicas para caseiros

  • Dose usada: cerca de 1g/L (200g para 210 litros)
  • Disponível em pacotes grandes (ainda sem versão fracionada no Brasil)

Como fazer a mosturação ideal para cervejas sem álcool?

Foco na produção de açúcares complexos

  • Temperatura: 74°C
  • pH: 5,4
  • Tempo: 40 minutos

Esse setup favorece a alfa-amilase, reduz a ação da beta-amilase e evita degradação de proteínas importantes para retenção de espuma.

Proporção e grist

  • 85% malte Pilsen
  • 15% aveia em flocos
  • Relação água/malte: ~2,7 L/kg
  • OG: 1.026 | FG: 1.023

A aveia contribui com corpo, cremosidade e espuma. Nas próximas versões, Tedesko pretende aumentar para 20–30%.

Como evitar o gosto de mosto em cervejas sem álcool?

Fermentação completa e uso de lúpulo ajudam

A fermentação completa com leveduras específicas gera compostos que suavizam o gosto de mosto cru. Além disso, a carga aromática dos lúpulos — especialmente extratos com menos matéria vegetal — ajuda a mascarar qualquer off-flavor, como o acetaldeído ou sabores metálicos.

Qual a melhor estratégia de lupulagem para Hazy sem álcool?

Carga balanceada e baixo risco de hop creep

  • Whirlpool: 5 g/L
  • Dry hopping: 8–10 g/L
  • Lúpulos usados: Nelson Sauvin e Riwaka
  • Extrato: Quantum (Hops Company)

A escolha por extratos ou cryo hops reduz a matéria verde e minimiza a atividade enzimática que poderia causar hop creep.

Como controlar o pH para garantir estabilidade e espuma?

Acidificação no final da fervura ou no fermentador

  • Alvo: pH 4.2 a 4.4
  • Agente: ácido lático
  • Momento: pós-fervura ou início da fermentação

Essa acidificação é crucial para evitar contaminações e prolongar a vida útil da cerveja, já que a baixa atividade fermentativa não reduz o pH naturalmente como em cervejas alcoólicas.

Qual perfil de água ideal para Hazy IPA sem álcool?

Foco em corpo e maciez

  • Cloreto: 200 ppm
  • Magnésio: 30–40 ppm
  • Sulfato: ~30 ppm

Essa água promove sensação de corpo, suavidade na boca e favorece os aromas frutados, evitando a secura excessiva que o sulfato em excesso pode causar.

Carbonatação, envase e pasteurização: o que muda?

Carbonatação padrão e envase em lata ou keg

  • Carbonatação: 2.5–2.7 volumes CO₂
  • Envase: não pasteurizado
  • Dica extra: mantenha refrigerada para maior estabilidade

Graças à boa fermentação, lúpulo e pH baixo, a Piwo optou por não pasteurizar, preservando o frescor dos lúpulos — especialmente os do Novo Mundo.

Faça você também!

Criar uma cerveja artesanal sem álcool é um exercício técnico, criativo e altamente gratificante. Com planejamento, é possível entregar uma experiência sensorial completa — com corpo, aroma e estabilidade —, mesmo em pequena escala.

A Hazy IPA sem álcool da Piwo é um exemplo de como a técnica e a curiosidade podem expandir os limites da cerveja artesanal. E como disse o Tedesko: “é uma forma de começar de novo. Reaprender, estudar, acompanhar cada passo — e, no final, ter uma cerveja de verdade nas mãos.”

#279 – Água: BÔNUS – ajustando seu perfil de água

Brassagem Forte - Água

Ajuste de água na prática: aplicações em três estilos de cerveja

Introdução: a água como elemento final (e essencial)

Neste episódio bônus, que encerra a série sobre água no Brassagem Forte, Henrique Boaventura e Gabriela Lando, a Química Cervejeira, se aprofundam na aplicação prática dos conhecimentos discutidos em episódios anteriores.

A proposta? Ajustar a água para três estilos diferentes de cerveja utilizando dois perfis opostos: uma água de superfície (pouco mineralizada) e uma água de poço (alta alcalinidade).

O objetivo aqui não é apenas aplicar concentrações em um software como Brewfather ou Beersmith, mas entender o raciocínio por trás dos ajustes, seus impactos sensoriais e técnicos, e como alcançar o equilíbrio necessário para extrair o melhor de cada receita.

É mais um episódio com a parceria da Lamas Brewshop, da Hops Company, da Levteck e da Cerveja Stannis. O papo tá imperdível!

O que nos ensinou John Palmer?

Antes de entrar nos números, Gabriela resgata conceitos fundamentais do livro Water, de John Palmer:

  • Objetivo da correção da água: melhorar o sabor da cerveja, nunca complicar o processo.
  • Menos é mais: evitar excesso de mineralização, respeitando os limites recomendados para cada mineral.
  • Repetição e calibração: são necessários de 3 a 5 lotes para encontrar o ponto ideal.
  • Faixa de pH ideal da mostura: entre 5,2 e 5,6. Medir sempre com pH-metro calibrado.
  • Evite pressa e exageros: “Meça duas vezes, adicione uma.”
  • Não tenha medo de errar: experimente, mas com responsabilidade técnica e sanitária.

Os perfis de água utilizados

Água de superfície (padrão de rede urbana)

  • pH: 6,2
  • Cálcio (Ca): 6 ppm
  • Magnésio (Mg): 2 ppm
  • Sódio (Na): 5 ppm
  • Cloreto (Cl): 12 ppm
  • Sulfato (SO₄): 15 ppm
  • Bicarbonato (HCO₃): 10 ppm
  • Alcalinidade: 8 ppm
  • Alcalinidade residual: 2,5 ppm

Água de poço (alta alcalinidade)

  • pH: 7,1
  • Cálcio: 35 ppm
  • Magnésio: 7 ppm
  • Sódio: 13 ppm
  • Cloreto: 15 ppm
  • Sulfato: 0 ppm (abaixo do limite de detecção)
  • Bicarbonato: 160 ppm
  • Alcalinidade: 131 ppm
  • Alcalinidade residual: 102 ppm
       
ÁguaSuperficial (S)Poço (P)
pH6,27,1
Ca2+(cálcio)6 ppm35 ppm
Mg2+ (magnésio)2 ppm7 ppm
Na+ (sódio)5 ppm13 ppm
Cl (cloreto)12 ppm15 ppm
SO42- (sulfato)15 ppm0 ppm
HCO3 (bicarbonato)10 ppm160 ppm
Alcalinidade8 ppm131 ppm
RA2,5 (3 no Brewfather)102

Estudo de Caso 1: Cream Ale

Características do estilo

A Cream Ale é uma cerveja leve, limpa, neutra, refrescante e com leve caráter maltado. Altamente carbonatada, é ideal para consumo em atividades ao ar livre, com atenuação elevada e pouco amargor.

Receita base (brew in a bag)

  • 4,5 kg de malte Pilsen
  • 500 g de milho em flocos
  • 150 g de açúcar comum
  • Volume total de água: 34 L
  • Volume final de mostura: 21 L
  • Eficiência: 70%

Diretrizes de perfil de água (segundo Palmer)

Para uma cerveja clara, leve e com amargor de baixo a médio:

  • Cálcio: 50–100 ppm
  • Magnésio: até 30 ppm
  • Cloreto: até 100 ppm
  • Sulfato: até 50 ppm
  • Razão Sulfato/Cloreto: ~1,3
  • Alcalinidade residual: entre -30 e 0 ppm

Ajuste da água de superfície

Problema: Baixos níveis de cálcio e magnésio.
Solução proposta:

  • Aumentar cálcio para 60 ppm
  • Aumentar magnésio para 10 ppm (opcional)

Impacto da alteração:

  • Com cálcio e magnésio: alcalinidade residual = -40
  • Apenas cálcio: alcalinidade residual = -36

Adição de sais (para 34 L de água):

  • 3 g de cloreto de cálcio (CaCl₂)
  • 3,3 g de sulfato de cálcio (CaSO₄)

Resultado:

  • Sulfato = 70 ppm
  • Cloreto = 55 ppm
  • Razão ≈ 1,3
  • Alcalinidade residual = -31

Nota: Magnésio poderia ser adicionado, mas não foi neste caso para evitar ultrapassar a proporção ideal e não carregar o perfil sensorial.

Ajuste da água de poço

Problema: Alcalinidade muito elevada (102 ppm).
Adição dos mesmos sais (CaCl₂ e CaSO₄):

  • 2,8 g de cloreto de cálcio
  • 4,8 g de sulfato de cálcio

Resultado:

  • Cálcio = 87 ppm
  • Alcalinidade residual = 65 ppm

Solução complementar:

  • Acidificação com ácido lático a 80%
  • Previsão de adição: 4,5 mL para alcançar pH 5,6

Alerta importante:

  • Não confiar 100% nas previsões do Brewfather; sempre usar pH-metro calibrado durante a mostura.
Cream AleS (início)S (final)P (início)P (final)
Ca2+6 ppm53 ppm35 ppm86 ppm
Mg2+2 ppm2 ppm7 ppm7 ppm
Na+5 ppm5 ppm13 ppm13 ppm
Cl12 ppm55 ppm15 ppm55 ppm
SO42-15 ppm70 ppm0 ppm70 ppm
HCO310 ppm160 ppm
Alcalinidade8 ppm131 ppm
RA3-3110265
Acidificação?TalvezSim
Adições3 g de cloreto de cálcio (CaCl2)
3,3 g de sulfato de cálcio (CaSO4)
2,5 g de cloreto de cálcio (CaCl2)
4,2 g de sulfato de cálcio (CaSO4)
Volume34 L de água

Considerações técnicas importantes

  • Sais sempre vêm com nome e sobrenome: usar cloreto de cálcio e sulfato de cálcio implica em adicionar tanto o cátion (Ca²⁺) quanto o ânion (Cl⁻ ou SO₄²⁻). Isso afeta múltiplos parâmetros.
  • O pH é logarítmico, não linear: pequenas adições de ácido podem ter impactos desproporcionais. Ajuste com calma e com acompanhamento em tempo real.
  • Só ajuste pH depois da adição do malte: os maltes afetam fortemente o pH da mostura, especialmente maltes escuros ou cristal.
  • O ácido lático é o mais indicado para ajuste de pH: o fosfórico pode interferir com o cálcio e prejudicar o processo.

Estudo de Caso 2: American IPA

Características do estilo

Segundo o BJCP, a American IPA é uma cerveja clara, de teor alcoólico moderadamente alto, com destaque para o lúpulo — tanto no aroma quanto no amargor. Seu perfil de fermentação é limpo, com final seco e amargor assertivo.

Receita utilizada

Baseada na Punk IPA da BrewDog:

  • 6 kg de malte Pale
  • 330 g de Caramunique I
  • Mostura com 35,5 L de água, fervura com 31,8 L
  • Lote final: 21 L

Diretrizes de perfil de água para o estilo

Conforme Palmer:

  • Cálcio: 50–150 ppm
  • Magnésio: 0–30 ppm
  • Cloreto: 0–100 ppm
  • Sulfato: 100–400 ppm
  • Relação Sulfato:Cloreto: 2,5 a 4
  • Alcalinidade residual: -30 a +30 ppm

Ajuste da água de superfície

Objetivo: manter a intensidade de lúpulo sem excesso de minerais.

  • Sulfato: 200 ppm
  • Cloreto: 75 ppm → Razão: 2,7
  • Magnésio: 12 ppm para evitar excesso de cálcio
  • Cálcio: 103 ppm

Adições por 35,5 L de água:

  • 9,3 g de sulfato de cálcio (CaSO₄)
  • 13,5 g de sulfato de magnésio (MgSO₄)
  • 13,5 g de cloreto de cálcio (CaCl₂)

Resultado técnico:

  • pH estimado: ~5,4
  • Se necessário, ajuste com bicarbonato de sódio:
    • 2,5 g → aumenta alcalinidade residual para -30 ppm
    • Sódio resultante: 24 ppm

Ajuste da água de poço

Água com elevada alcalinidade exige maior atenção.

Adições por 35,5 L:

  • 7,1 g de CaSO₄
  • 8 g de MgSO₄
  • 3,4 g de CaCl₂

Resultados:

  • Cálcio = 116 ppm
  • Magnésio = 29 ppm
  • Alcalinidade residual = 31 ppm

Acidificação necessária: 1,3 mL de ácido lático (80%) para pH 5,6

American IPAS (início)S (final)P (início)P (final)
Ca2+6 ppm103 ppm35 ppm116 ppm
Mg2+2 ppm12 ppm7 ppm29 ppm
Na+5 ppm24 ppm13 ppm13 ppm
Cl12 ppm75 ppm15 ppm76 ppm
SO42-15 ppm200 ppm0 ppm200 ppm
HCO310 ppm160 ppm
Alcalinidade8 ppm131 ppm
RA3-3010231
Acidificação?NãoSim
Adições2,5 g de bicarbonato de sódio (NaHCO3)
3,5 g de cloreto de cálcio (CaCl2)9,3 g de sulfato de cálcio (CaSO4)3,5 g de sulfato de magnésio (MgSO4)
3,4 g de cloreto de cálcio (CaCl2)
7,1 g de sulfato de cálcio (CaSO4)8 g de sulfato de magnésio (MgSO4)
Volume35,5 L de água

Estudo de Caso 3: Irish Stout

Características do estilo

Estilo preto com sabor torrado pronunciado. Pode variar de levemente maltada até extremamente seca e amarga. O perfil sensorial remete a café e chocolate, com ou sem cremosidade, dependendo do método de serviço.

Receita

  • 3 kg de malte Pale
  • 650 g de cevada em flocos
  • 320 g de cevada torrada
  • 33,5 L de água de mostura, fervura com 31 L
  • Lote final: 21 L

Parâmetros ideais para o estilo (Palmer)

  • Cálcio: 50–75 ppm
  • Magnésio: 0–30 ppm
  • Cloreto e sulfato: 50–150 ppm cada
  • Relação: ~1:1
  • Alcalinidade residual: 60–120 ppm
  • Águas alcalinas são desejáveis

Ajuste com água superficial

Desafio: baixa alcalinidade pode levar a pH abaixo do ideal com maltes escuros.

Evitar uso de carbonato de cálcio: difícil solubilização.
Solução:

  • Usar bicarbonato de sódio para elevar a alcalinidade
  • Evitar práticas como adicionar sais sobre a cama de grãos — não há eficácia comprovada

Composição final da água (para 33,5 L):

  • 3,6 g de CaSO₄
  • 4,3 g de CaCl₂
  • 3,4 g de bicarbonato de sódio

Resultados:

  • Alcalinidade = 82 ppm
  • Cálcio = 66 ppm
  • Sódio = 33 ppm
  • Sulfato e cloreto = 75 ppm cada

Ajuste com água de poço

Vantagem: alcalinidade já elevada, ideal para maltes torrados.
Desafio: ausência de sulfato → necessário adicionar.

Adições (para 33,5 L):

  • 2 g de CaSO₄
  • 3,2 g de CaCl₂
  • 2,3 g de MgSO₄

Resultados:

  • Cálcio = 75 ppm
  • Magnésio = 14 ppm
  • Sulfato e cloreto = 60 ppm cada
  • Alcalinidade residual = 69 ppm

Atenção especial:

  • Mesmo com água alcalina, medir o pH é essencial.
  • Maltes escuros variam muito de cor real em relação ao valor estimado nas calculadoras (como Brewfather).

Ideal: solicitar ao fornecedor o EBC real dos maltes.

Irish StoutS (início)S (final)P (início)P (final)
Ca2+6 ppm66 ppm35 ppm75 ppm
Mg2+2 ppm2 ppm7 ppm14 ppm
Na+5 ppm33 ppm13 ppm13 ppm
Cl12 ppm75 ppm15 ppm60 ppm
SO42-15 ppm75 ppm0 ppm60 ppm
HCO310 ppm160 ppm
Alcalinidade8 ppm131 ppm
RA31910269
Acidificação?NãoSim
Adições3,4 g de bicarbonato de sódio (NaHCO3)
4,3 g de cloreto de cálcio (CaCl2)3,6 g de sulfato de cálcio (CaSO4)
3,2 g de cloreto de cálcio (CaCl2)
2 g de sulfato de cálcio (CaSO4)2,3 g de sulfato de magnésio (MgSO4)
Volume33,5 L de água

Conclusão: ajuste de a água é estratégia e prática

O ajuste do perfil de água é uma das ferramentas mais poderosas para a construção do perfil sensorial e técnico de uma cerveja. Como visto nos três exemplos — Cream Ale, American IPA e Irish Stout —, diferentes fontes de água e objetivos de estilo exigem estratégias distintas:

  • Águas pouco mineralizadas exigem complementação precisa de sais e atenção com o pH.
  • Águas de poço podem facilitar receitas escuras, mas exigem controle de minerais específicos.
  • Não há atalhos: medição de pH durante a mostura é obrigatória.
  • O uso consciente de sais (com “nome e sobrenome”) evita desequilíbrios técnicos.
  • Ferramentas como o Brewfather são úteis, mas não substituem a medição real com pH-metros calibrados.

E por fim, o ajuste de água é tanto uma ciência quanto uma arte. Exige testes, paciência, observação e curiosidade. Como resumiu Gabriela , o mantra que deve ficar após essa série é simples e direto:

“Meça o pH da mostura.”

Leituras recomendadas

  1. Água (Palmer & Kaminski) – Editora Krater
  2. How to Brew (John Palmer) – Edição em português ampliada
  3. Ciência da Cerveja (Luís Torre) – Tradução e edição por Gabriela Lando
  4. Química da Cerveja (Alfredo A. Muxel) – Professor da UFSC

Essas obras são ótimos pontos de partida (e aprofundamento) para quem deseja entender melhor como a água influencia — e pode transformar — a cerveja que você produz!

#278 – Brassando com Estilo: Rye IPA

Brassando com Estilo - Rye IPA

Rye IPA: guia completo para produzir a India Pale Ale com centeio

O que é a Rye IPA?

As specialty IPAs surgem como uma ramificação das tradicionais American IPAs, criadas para destacar características específicas que justificam sua separação. A Rye IPA (ou IPA com centeio) é uma dessas variações modernas, trazendo um diferencial sensorial interessante: o uso de malte de centeio.

Segundo o BJCP (Beer Judge Certification Program), a Rye IPA é essencialmente uma American IPA com adição de malte de centeio, o que confere um sabor condimentado, lembrando pão apimentado, com corpo aveludado e cremoso. Além disso, o final costuma ser mais seco, com notas de cereais — tudo isso, claro, dependendo da composição da receita.

Com a parceria da Lamas Brewshop, da Hops Company, da Levteck e da Cerveja Stannis, na companhia do químico e cervejeiro Duan Ceola, exploramos os detalhes e as melhores abordagens para a produção desse instigante estilo contemporâneo.

Perfil Sensorial da Rye IPA

Aroma

O aroma predominante segue o padrão das American IPAs, com lúpulos intensos trazendo notas de frutas tropicais, frutas de caroço, cítricos, resina, pinho e até frutas vermelhas ou melão. Em segundo plano, há um leve toque apimentado do malte de centeio, complementado por um perfil de fermentação limpo, com ésteres e álcool leves e opcionais.

Aparência

A coloração varia entre dourado médio e âmbar claro. A turbidez leve é aceitável, especialmente pela presença do centeio. A espuma costuma ser de cor branca, com formação e retenção boas.

Sabor

O lúpulo é o protagonista, com intensidade de médio a muito alto. O suporte maltado é limpo, de baixo a médio-baixo, podendo trazer leves notas de caramelo e tostado. O centeio contribui com um sabor picante e apimentado perceptível, o que reforça a secura no final do gole.

Sensação na boca

O corpo varia de médio-leve a médio, com textura macia e até levemente cremosa. A carbonatação tende a ser média ou média-alta, sem aspereza. Um leve aquecimento alcoólico é aceitável.

Comparação com outras IPAs

A Rye IPA é considerada uma variação da American IPA e deve ter o caráter de centeio perceptível. Caso contrário, deve ser inscrita como uma 21A – American IPA. Sensorialmente, é uma cerveja mais seca, picante e cremosa do que a maioria das American IPAs, com um final persistente e condimentado.

Parâmetros Técnicos da Rye IPA

  • OG (Densidade Inicial): 1.056 – 1.075
  • FG (Densidade Final): 1.008 – 1.014
  • IBU: 50 – 75
  • SRM: 6 – 14
  • ABV: 5,5 – 8%
  • Exemplos comerciais: Founders Red Rye IPA e Sierra Nevada Ruthless Rye

Maltes e o papel do centeio

Existem várias formas de centeio que podem ser usadas em uma Rye IPA:

  • Malte de centeio: contém enzimas que ajudam na conversão de amido, traz dulçor, picância, corpo e viscosidade ao mosto.
  • Centeio em flocos ou grão cru: não tem enzimas, mas contribui para retenção de espuma e sensação sedosa, embora possa complicar a filtração.

É essencial escolher insumos de qualidade, evitando centeios enriquecidos com metais (como os vendidos para alimentação humana), que podem oxidar a cerveja e deixá-la escura e opaca.

Criando sua receita de Rye IPA

Proporções sugeridas

  • 15% Malte de Centeio
  • 80% Malte Pilsen ou Pale Ale
  • 5% Malte Biscuit (para adicionar leve toque torrado, semelhante ao Maris Otter)

Malte Biscuit agrega sabor sutil e combina bem com lúpulos. Já o malte Viena pode acelerar a oxidação sensorial da cerveja. Maltes caramelos/crystal devem ser usados com moderação (até 2%).

Estratégias de mostura e uso de enzimas

O centeio contém alto teor de beta-glucanos, o que pode tornar a mostura complexa, especialmente em BIAB. Recomenda-se:

  • Parada protéica entre 45–55 °C por 10 a 15 minutos (uso acima de 15%)
  • Uso de enzimas como beta-glucanase ou amilase
  • Conhecimento do equipamento para evitar perda de retenção de espuma

Lúpulos para Rye IPA: modernos e clássicos

Na fervura
  • Citra, Columbus ou Magnum
  • 1 g/L a 30 minutos do fim da fervura
Whirlpool
  • Aida Rosetti CryoHops: 5 g/L a 40–60 °C por 20 minutos
Dry Hopping
  • 1ª adição: 4 g/L de Citra
  • 2ª adição: 3 g/L de Galaxy, Riwaka, Motueka
Lúpulos clássicos que combinam

Centennial, Cascade, Columbus e Chinook funcionam muito bem com o centeio, trazendo perfil “old school” resinoso e herbáceo.

Escolha da Levedura

Opções com perfil neutro:

  • US-05 – confiável
  • K-97 – subestimada, ótima floculação e interação com lúpulos

Fermentação ideal entre 16 °C e 17 °C.

Perfil de Água e pH

  • 100 ppm Sulfato (CaSO₄)
  • 50 ppm Cloreto (CaCl₂)
  • 50 ppm Cloreto (NaCl)
  • pH de mostura: 5.2 a 5.4
  • Baixa alcalinidade favorece leve turbidez desejada

Carbonatação Ideal

  • Entre 2.5 e 2.7 volumes de CO₂
  • Abaixo disso: sensação empapucenta
  • Acima disso: frisante e agressiva

Receita Modelo

Grãos:
  • 80% Malte Pilsen
  • 5% Malte Biscuit
  • 15% Malte de Centeio
Água:
  • 100 ppm Sulfato (CaSO₄)
  • 50 ppm Cloreto (CaCl₂)
  • 50 ppm Cloreto (NaCl)
Lúpulos:
  • Citra (1 g/L – 30 min)
  • Aida Rosetti CryoHops (5 g/L – Whirlpool a 40–60 °C)
  • Dry Hopping: 4 g/L Citra + 3 g/L Galaxy
Levedura:
  • K-97 (pitching 0,75, 17 °C)
Mostura:
  • Parada protéica: 15 min a ~53 °C
  • 40 min a 63 °C
  • 15 min a 72 °C
  • Mashout opcional
pH:
  • Mostura: 5.2
  • Fervura: 5.15–5.2
  • Mosto final: ~5.1

Conclusão: Uma IPA para quem busca mais complexidade

A Rye IPA é uma expressão criativa e ousada dentro do universo das IPAs. Sua construção exige atenção a detalhes técnicos — do uso de enzimas à seleção de lúpulos, do controle do pH à escolha da levedura. O centeio, quando bem trabalhado, entrega complexidade, corpo e uma picância que desafiam o paladar e convidam à experimentação.

Embora pouco representada em concursos e ainda rara no mercado, a Rye IPA oferece grande potencial sensorial e espaço para inovação. Seja com lúpulos modernos ou clássicos, em perfil turvo ou límpido, essa cerveja mostra que tradição e criatividade podem coexistir no copo.

#274 – Brassando com Estilo: Specialty Spice Beer

Specialty Spice Beer

Como fazer uma Specialty Spice Beer: guia prático de técnicas e exemplos

O Brassagem Forte desta semana recebe Jocemar Gross, criador da Dude Brewing de Caxias do Sul, que compartilha sua experiência prática para falar de Specialty Spice Beer.

Jocemar atua dentro do complexo Beco do Dude, onde, além da cervejaria, funciona uma torrefação de café, o clube de assinatura, além do bar e restaurante da Dude. O braço Brewing, aliás, lança uma ou duas Specialty Spice Beers por mês, acumulando ampla experiência prática no estilo.

Não perca esse papo, que conta com a parceria da Lamas Brewshop, da Hops Company, da Levteck e da Cerveja Stannis!

O que é Specialty Spice Beer?

Segundo o BJCP, o estilo 33B Specialty Spice Beer é baseado na 30A (Spice, Herb, or Vegetable Beer) com adição de:

  • Açúcares fermentáveis (mel, açúcar mascavo, açúcar invertido, lactose)
  • Adjuntos alternativos
  • Cereais diversos
  • Processos especiais adicionais

É importante notar que os estilos 30B (Autumn Seasonal Beer) e 30C (Winter Seasonal Beer) já contemplam adições e não devem ser usados como base para a Specialty Spice Beer.

Diretrizes sensoriais para Specialty Spice Beer

Aroma

Segue a linha da 30A, mas ingredientes fermentáveis como mel ou melaço adicionam novos componentes. O aroma deve manter equilíbrio entre adjuntos e base.

Aparência

Definida conforme os ingredientes e processos empregados.

Sabor

O perfil de sabor é semelhante ao da 30A, com ajustes dependendo dos açúcares e especiarias:

  • Açúcares fermentáveis resultam em final mais seco.
  • Elementos não fermentáveis aumentam corpo e doçura.
Sensação de Boca

Varia amplamente: pode ser denso e licoroso ou leve, conforme a combinação.

Como escolher a base ideal

Perguntas-chave:

  • A especiaria será protagonista ou coadjuvante?
  • Quais notas sensoriais a base pode agregar?
Bases neutras (para protagonismo da especiaria)
  • American Blonde Ale
  • Witbier
  • Kölsch
Bases complexas (para diálogo com a especiaria)
  • Belgian Dubbel
  • Stout
  • Saison

Estratégias para adição de especiarias

Cada etapa tem sua peculiaridade

Mostura
  • Extração suave
  • Integração com notas de malte
  • Boa para especiarias robustas (ex.: canela)
Fervura
  • Extração intensa
  • Esterilização dos ingredientes
  • Ideal para gengibre e pimentas
Flame Out / Whirlpool
  • Melhor preservação de compostos aromáticos
  • Indicada para especiarias delicadas
Fermentação primária
  • Potencial de biotransformação sensorial
  • Alta necessidade de sanitização
Maturação (Dry Spice)
  • Ajustes finos de aroma e sabor
  • Maior controle sensorial
Ajustes pré-envase
  • Uso de extratos alcoólicos
  • Permite correções de última hora

Evitando oxidação e contaminação

Impactos da oxidação
  • Escurecimento da cerveja
  • Sabores indesejados, como papelão
  • Perda de frescor
Como minimizar
  • Extratos alcoólicos rápidos
  • Purga com CO₂
  • Manipulação rápida e fresca dos ingredientes

Procedência importa

Buscar fornecedores qualificados é essencial para garantir frescor e estabilidade! ✅

Exemplos e combinações práticas

Saison com pimenta-rosa, capim-limão e mel de laranjeira

  • Final seco e floral
  • Mel de laranjeira reforça secura

Belgian Dubbel com cardamomo, casca de laranja e candy sugar

  • Cardamomo harmonizando com ésteres
  • Candy Sugar escuro intensificando frutas secas

Receita prática: Imperial Stout “Red Velvet Chocolate Cake”

  • Estilo: Imperial Stout
  • Adjuntos: nibs de cacau, extrato de baunilha, suco de beterraba
  • Destaques:
    • Double mash para alta densidade
    • Carbonatação de 2.5 volumes para espuma vermelha
    • Maturar com nibs de cacau e ajustar com suco de beterraba

Livros para se aprofundar

Conclusão

Produzir uma Specialty Spice Beer de qualidade exige técnica, planejamento e sensibilidade. Definir o propósito da especiaria, testar aditivos sensorialmente e manter a base limpa e equilibrada são chaves para criar uma verdadeira experiência de aroma, sabor e história no copo!

E você, já se aventurou por esse estilo?

#273 – Análise da influência do terroir no lúpulo Comet

lúpulo Comet

Lúpulo Comet brasileiro: aualidade, desafios e oportunidades para o mercado cervejeiro

Introdução

O lúpulo brasileiro tem ganhado espaço e respeito entre cervejeiros e pesquisadores, especialmente com o crescimento do cultivo da variedade Comet. Para entender melhor esse cenário, o Brassagem Forte recebeu Raul Rosa, farmacêutico, bioquímico e cervejeiro caseiro desde 2011, que conduz pesquisas sobre lúpulo na Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP.

Neste episódio, Raul compartilhou detalhes técnicos e os bastidores de sua investigação sobre o desempenho do lúpulo Comet brasileiro e sua comparação com o de regiões produtoras dos Estados Unidos.

Não perca esse papo, que conta com a parceria da Lamas Brewshop, da Hops Company, da Levteck e da Cerveja Stannis!

A motivação por trás do estudo

Embora o foco do projeto de Raul Rosa não seja o terroir em si, a influência do ambiente, assim como a das práticas agronômicas, nas características químicas e sensoriais do lúpulo se tornou um componente central. A linha principal da pesquisa é a produção e caracterização de extratos de lúpulo, que competem com o lúpulo em pellet no uso comercial.

Por que o Comet?

A escolha pela variedade Comet teve três justificativas principais:

  1. Qualidade observada empiricamente por Raul em fazendas brasileiras.
  2. Dados da Aprolúpulo, que mostraram o Comet como a variedade mais plantada no Brasil em 2023 (34 hectares – 32% da área total).
  3. O Comet é uma variedade pública desenvolvida pela Oregon State University, facilitando o acesso e a colaboração com o laboratório do professor Thomas Shellhammer, referência mundial em ciência cervejeira.

Um comparativo entre Brasil e Estados Unidos

A proposta metodológica envolveu comparar amostras do Comet cultivado no Brasil com amostras das regiões de Yakima Valley (Washington) e Willamette Valley (Oregon). Essas áreas integram o chamado Pacific Northwest, região que concentra a maior parte da produção estadunidense de lúpulo.

Já as amostras brasileiras foram coletadas de quatro fazendas: Brava Terra, Boca da Mata, Terra Alta Lúpulo e Lúpulo Brasil.

Terroir brasileiro e fotoperíodo artificial

Como o Brasil tem baixa variação de fotoperíodo ao longo do ano, os produtores utilizam luz artificial com LEDs para simular os longos dias de verão das regiões temperadas e estimular o crescimento adequado do lúpulo. Esse fator tecnológico passou a compor uma característica única do terroir brasileiro de lúpulo.

No momento, estão em andamento pesquisas sobre o espectro de luz mais eficiente para esse tipo de cultivo.

Resultados promissores da pesquisa

Alta consistência nos teores de alfa-ácidos

O lúpulo Comet brasileiro apresentou teores estatisticamente superiores de alfa-ácido, com baixa variabilidade entre as amostras. Raul acredita que o momento de colheita — possivelmente tardio — pode ter favorecido esse acúmulo.

Ele também menciona uma tendência preocupante na Europa, onde mudanças climáticas têm reduzido o teor de alfa-ácido em variedades tradicionais, como o Saaz.

Mudanças climáticas e oportunidade para o Brasil

Com quebras de safra em regiões tradicionais, empresas do setor têm buscado diversificação geográfica. Isso representa uma oportunidade estratégica para os produtores brasileiros, principalmente considerando que o país importa cerca de 99% do lúpulo que consome, apesar de ser o terceiro maior produtor de cerveja do mundo.

O Comet e as lagers nacionais

Embora haja uma tendência em usar o Comet em IPAs brasileiras, Raul propõe seu uso como lúpulo de amargor em Lagers de grande escala. Ele argumenta que consolidar o uso do lúpulo nacional nas cervejas mais consumidas no país pode trazer impacto real para os produtores rurais.

Análise sensorial estruturada

Potenciais e desafios aromáticos

A análise sensorial foi conduzida com painel treinado, utilizando referências aromáticas para cada descritor. O lúpulo Comet brasileiro se mostrou tão cítrico e floral quanto os norte-americanos. Também apresentou notas resinosas e herbais marcantes.

Off-flavors e variabilidade

No entanto, as amostras brasileiras apresentaram de forma consistente o descritor onion/garlic (cebola e alho), potencialmente associado à colheita tardia. Um outro off-flavor identificado foi o pimentão, que, por sua vez, pode indicar colheita precoce. Esses dados sugerem uma falta de padronização no manejo entre as fazendas.

A pesquisa também identificou grande variabilidade entre as amostras brasileiras, inclusive com notas de tabaco e madeira em uma delas, demonstrando o potencial de complexidade do terroir nacional.

Aplicações práticas e usos do lúpulo nacional

Raul reforça que não basta ter bons resultados laboratoriais. O lúpulo precisa ser testado em cervejas reais para entender seu impacto sensorial. Ele recomenda aos cervejeiros que testem em lotes pequenos antes de grandes produções, especialmente se o objetivo for utilizar lúpulo nacional de forma consistente.

Cultura científica e colaborações internacionais

Um dos desafios enfrentados foi a dificuldade de coleta de amostras no Brasil. Raul destaca a baixa cultura de apoio à pesquisa por parte de produtores, em contraste com os EUA, onde entidades como o Hop Research Council são financiadas pelas próprias fazendas.

Durante sua estadia na Oregon State, Raul participou de outras pesquisas avançadas, como o impacto de incêndios florestais no lúpulo, uso de enzimas para rendimento de mosto e leveduras modificadas via CRISPR para aumentar a biotransformação aromática.

Método estatístico: como a análise foi conduzida

Na pesquisa de Rosa, foram utilizadas análises estatísticas como:

  • Análise de variância (ANOVA) para identificar diferenças significativas entre grupos.
  • Análise multivariada para cruzar dados químicos e sensoriais e entender suas correlações. Por exemplo, o descritor onion/garlic apareceu no mesmo quadrante estatístico dos altos teores de alfa-ácido e óleos essenciais.

Essas técnicas possibilitam visualização intuitiva das relações entre amostras e características sensoriais.

O futuro da pesquisa com lúpulo no Brasil

O próximo foco de Raul é concluir seu doutorado com a produção de extratos de lúpulo. No futuro, pretende expandir o estudo para outras variedades como a Cascade, também pública, muito plantada no Brasil.

Para isso, ele planeja incluir um agrônomo na equipe de pesquisadores, a fim de investigar os fatores agronômicos por trás da variabilidade observada, como tipo de solo, manejo e fertilização.

Conclusão: o Comet é só o começo

O estudo conduzido por Raul Rosa representa um marco para a pesquisa aplicada em lúpulo no Brasil. Com uma abordagem rigorosa e multidisciplinar, a análise mostrou que o lúpulo Comet cultivado em território nacional tem qualidade comparável — e em certos aspectos superior à dos produzidos em regiões tradicionais como Yakima e Willamette.

A consistência nos teores de alfa-ácido, a presença de óleos essenciais expressivos e o potencial sensorial revelam que o Brasil está no caminho certo. Com investimento, mais pesquisa e uso prático, o lúpulo brasileiro pode se consolidar como um insumo competitivo no cenário global.

Cabe agora ao mercado abraçar essa oportunidade: usar, testar, confiar e valorizar o que está sendo cultivado por aqui. O Comet é só o começo de uma nova era para o lúpulo nacional.