A Hora Ácida #5 com Henrique Boaventura e Diego Simão (Cozalinda)
As cervejas selvagens de fermentação espontânea conquistaram espaço entre os estilos mais intrigantes e complexos da cena artesanal. Neste episódio, Henrique Boaventura recebe novamente Diego Simão, da Cervejaria Cozalinda, para uma verdadeira aula sobre coleta de microrganismos selvagens — aqueles que não vêm de pacotinho, mas sim do meio ambiente, frutas, flores e até do mel de abelhas nativas.
O episódio também conta com relatos do Rodrigo Jardini (da Yarun Fermentados) e da pesquisadora Carola Carvalho (Space Beer Project).
Com a parceria da Lamas Brewshop, da Hops Company, da Levteck e da Cerveja Stannis, prepare-se para uma jornada ácida, cheia de cuidado técnico e que pode abrir caminho para experiências sensoriais únicas!
O que são microrganismos selvagens e onde encontrá-los?
Antes de existirem cepas isoladas e vendidas comercialmente, todas as fermentações eram conduzidas por microrganismos presentes nos utensílios, ingredientes ou no próprio ambiente. As cervejas ácidas de fermentação espontânea ainda se baseiam nesse princípio ancestral: captar leveduras selvagens e bactérias do meio ambiente e deixá-las fazer o trabalho de fermentação.
Esses microrganismos estão por toda parte, mas há locais que oferecem maior probabilidade de captura eficaz:
- Fontes de açúcar simples, como frutas, tubérculos ou flores, são os ambientes mais promissores.
- Ambientes historicamente fermentativos, como engenhos de farinha ou colmeias, oferecem colônias já estabelecidas.
- O ar também pode carregar microrganismos, mas sua taxa de inóculo é imprevisível.
Exemplos práticos de coleta: mandioca, frutas, ar e mel
Projeto Manipueira: a mandioca como meio vivo
Um dos destaques da Cozalinda é a Manipueira Selvagem, feita com suco de mandioca (manipueira) fermentado espontaneamente. Ao coletar esse suco em engenhos centenários, onde a mandioca é processada com madeiras antigas, cria-se um ambiente propício à coleta de microrganismos adaptados.
⚠ Importante: a manipueira usada não é adicionada à cerveja, mas sim utilizada como meio de fermentação e propagação inicial.
Mosto exposto ao ar: técnica arriscada
Durante um período, muitos cervejeiros tentaram expor mosto resfriado ao ar em ambientes naturais. Embora pareça romântico (e até remeta às Lambics belgas), esse método apresenta baixa taxa de sucesso e alto risco sanitário. A falta de controle sobre o tipo e quantidade de microrganismos que se instalam compromete a segurança e o resultado sensorial da cerveja.
Frutas como meio de coleta
As frutas são excelentes candidatas: carregam açúcar, e muitas vezes já estão colonizadas por leveduras selvagens e outros microrganismos. O ideal é coletar frutas frescas, amassá-las com luvas higienizadas e colocá-las para fermentar em suco pasteurizado ou mosto resfriado. Evite frutas com bolores visíveis — micro-organismos oxidativos tendem a ser indesejados.
Existem duas abordagens:
- Coleta ativa, onde a fruta é usada como inoculante primário num meio (mosto ou suco).
- Adjunto fermentativo, onde a fruta inteira é adicionada à cerveja pronta, como nas Lambics com frutas. Essa técnica adiciona novos açúcares e microrganismos, alterando o perfil sensorial da bebida.
Boas frutas para coletar:
- Jabuticaba
- Araçá
- Amora
- Framboesa
- Cereja
Frutas com sementes grandes (como pitanga) podem gerar adstringência ou liberar substâncias indesejadas como ácido cianídrico.
Frutas, flores, pólen e ceiva como fontes microbianas
Flores
Flores são ricas em microrganismos graças à presença de açúcares e ao trânsito de insetos. Apesar disso, a coleta direta a partir de flores exige cuidados laboratoriais — preferencialmente com isolamento em meio de cultura, como ágar. A baixa quantidade de açúcares e a diversidade microbiana tornam o processo mais técnico e menos previsível.
Pólen
O pólen de abelhas nativas é um meio altamente promissor. A pesquisadora Carola Carvalho, do Space Beer Project, destaca que ele contém leveduras específicas da colmeia, capazes de fermentar espontaneamente. O uso exige cuidado, pois poucas delas são Saccharomyces e nem todas geram resultados sensoriais agradáveis.
Ceiva de árvores
Em regiões como Escandinávia e Itália, a ceiva (como a do maple) é usada na produção de bebidas fermentadas. Com baixo teor de açúcar, ela exige concentrações e coletas específicas. Apesar de menos comum, é uma fonte viável de microrganismos.
Mel de abelhas nativas: um campo fértil de fermentações
Diego Simão compartilha sua experiência com abelhas mirim e mandaçaia. O mel dessas abelhas, com menor teor de açúcar e maior umidade, fermenta com facilidade. Após coleta com seringas sanitizadas, o mel é propagado sucessivamente em suco de maçã pasteurizado e depois em mosto, até alcançar uma colônia estável.
Rodrigo, da Yarun Fermentados, também utiliza mel de abelhas tubuna, propagando os microrganismos em mosto lupulado e posteriormente em mosto mais neutro. A escolha do meio interfere diretamente no tipo de levedura selecionada e no resultado sensorial final.
Etapas e cuidados fundamentais na coleta
Equipamentos e higiene
- Luvas, frascos de vidro esterilizados, seringas novas e airlocks são obrigatórios.
- O uso de equipamentos inadequados pode comprometer toda a coleta.
Preparo do meio de propagação
- Adicionar álcool (3–5%) ao mosto ajuda a inibir microrganismos patogênicos.
- Ajustar o pH para cerca de 4,5 é outra medida de segurança.
- Mostos com diferentes níveis de IBU permitem selecionar perfis específicos (mais ou menos acidez, mais resistência bacteriana, etc).
Propagações sequenciais e análise sensorial
- Nunca use a primeira fermentação diretamente na cerveja final.
- Realize de 2 a 5 propagações em meios diferentes.
- Avalie o perfil sensorial, fermentativo e estabilidade antes de escalar a produção.
Conclusão: ciência, cuidado e criatividade na coleta selvagem
A coleta de microrganismos selvagens para uso cervejeiro exige muito mais do que “abrir a janela e esperar a mágica acontecer”. Ela demanda conhecimento técnico, cuidado com a segurança alimentar e, principalmente, paciência. Seja com frutas, flores, mel ou mandioca, cada meio oferece desafios e oportunidades únicas de expressão sensorial.
Como reforçado por Diego, Rodrigo e Carola, é preciso entender que fermentação espontânea não significa ausência de método, mas sim respeito à diversidade da natureza, com técnica e propósito. No fim das contas, como diz Henrique, tudo tem um começo — e ele pode estar em uma jabuticabeira no quintal, num engenho centenário ou numa colmeia urbana.