#285 – A Hora Ácida: Lachancea thermotolerans brasileira

A Hora Ácida #285

Lachancea thermotolerans brasileira: a levedura selvagem que transforma a produção de cervejas ácida. Uma linhagem coletada na floresta amazônica promete inovação, controle de acidez e identidade brasileira para cervejarias artesanais.

Não perca mais este papo no Brassagem Forte, com a participação de Isabel Sabino e Diego Simão, e a parceria da Lamas Brewshop, da Hops Company, da Levteck e da Cerveja Stannis.

De pesquisadora a cervejeira: quem é Isabel Sabino

A bióloga Isabel Sabino iniciou sua trajetória com fungos da Antártida e, durante o doutorado, migrou para o estudo de leveduras. Sua experiência em microbiologia encontrou a prática na Cervejaria Verace, onde iniciou pesquisas sobre fermentação ácida com Lachancea thermotolerans. O foco era buscar uma levedura brasileira capaz de acidificar o mosto durante a fermentação, sem o uso de bactérias.

Por que a coleta de leveduras selvagens é importante

Coletar leveduras da natureza permite explorar o potencial biotecnológico de micro-organismos adaptados a ambientes específicos. A biodiversidade do Brasil oferece oportunidades únicas: espécies pouco estudadas podem revelar soluções para a produção de alimentos, bebidas e outros insumos industriais. A Lachancea thermotolerans foi isolada a partir da casca de uma árvore, revelando-se promissora para a produção de cervejas ácidas.

Como a Lachancea thermotolerans foi coletada na floresta amazônica

A coleta ocorreu em 2016, com apoio do Museu Emílio Goeldi. Casca de árvore foi colocada em meio líquido contendo rafinose e etanol, para selecionar leveduras menos comuns e tolerantes. A amostra foi processada rapidamente e armazenada no banco de microrganismos da UFMG, que hoje contém mais de 50 mil isolados. A linhagem brasileira da Lachancea thermotolerans foi obtida dessa coleta.

Da placa de Petri ao laboratório: desenvolvimento da levedura

A linhagem passou por triagens fisiológicas, testes de segurança e fermentações piloto. Ela demonstrou:

  • Atenuação de até 72%
  • Produção de 6 g/L de ácido lático
  • Alta floculação
  • Tolerância ao álcool de até 6%
  • Redução de pH para 3,8 em 24h

Produz também ácidos cítrico, málico, succínico e acético, conferindo uma acidez mais complexa e equilibrada — ideal para cervejas ácidas como Catharina Sour.

Perfil sensorial e potencial para cervejas ácidas

Durante os testes, a Lachancea thermotolerans brasileira apresentou:

  • Aromas florais (2-feniletanol), frutas brancas e mel
  • Acidez perceptível, porém suave
  • Sabor com equilíbrio entre dulçor residual e acidez
  • Potencial para fermentações com frutas brasileiras

O perfil sensorial foi descrito como próximo ao de um vinho branco, com notas de pera, uva verde e rosas.

Parâmetros técnicos da fermentação com a Lachancea brasileira

  • Temperatura ideal: 22 °C
  • Mosto: malte pilsen e caramelo, 8 IBU
  • Carbonatação: na garrafa
  • Tempo de acidificação: 24h para pH ~3,8
  • Atenuação: até 72%
  • Consumo parcial de maltose e maltotriose
  • Tolerância ao álcool: até 6%
  • Floculação: alta

A levedura ainda não teve sua tolerância a altos níveis de lúpulo totalmente estabelecida, mas os testes indicam bom desempenho até 10 IBU.

Aplicações práticas e recomendações para uso

Ideal para cervejarias que buscam praticidade, controle microbiológico e inovação, essa levedura permite a produção de cervejas ácidas sem uso de bactérias. Recomenda-se:

  • Mosturação que favoreça açúcares simples
  • Fermentação isolada, sem cofermentação inicial
  • Testes sensoriais antes da adição de frutas ou adjuntos

É uma excelente alternativa para Catharina Sour e outros estilos frutados, entregando equilíbrio e complexidade sem complicações no processo.

Comercialização e o futuro das leveduras nacionais

A Lachancea thermotolerans brasileira será comercializada pelo Laboratório da Cerveja, em parceria com a UFMG, após finalização do licenciamento. A expectativa é que cervejeiros caseiros e profissionais tenham acesso a um produto nacional com alto potencial biotecnológico.

Isabel Sabino também aponta o desejo de aplicar a levedura em outras bebidas fermentadas como sidras, espumantes e vinhos com frutas brasileiras, além de continuar explorando linhagens nativas com características únicas.

Conclusão

A Lachancea thermotolerans brasileira simboliza o encontro entre ciência, biodiversidade e inovação cervejeira. Com sua capacidade de acidificar, fermentar e entregar complexidade sensorial, ela oferece uma alternativa segura, prática e com identidade nacional.

Mais do que uma nova levedura, trata-se de uma nova etapa para a biotecnologia cervejeira brasileira — capaz de impulsionar tanto pequenos produtores quanto a indústria nacional rumo a sabores únicos, sustentáveis e autênticos.

#277 – Floor Malt: o malte artesanal que transforma estilos clássicos de cerveja

Floor malt

Neste episódio do Brassagem Forte, Henrique Boaventura convida Gustavo Simoni, da Koala San Brew, para uma conversa sobre floor malt, ingrediente distinto, especial, obtido por processos tradicionais, com potencial enorme no resultado final da sua cerveja!

Com a parceria da Lamas Brewshop, da Hops Company, da Levteck e da Cerveja Stannis, vem com a gente pra mais um papo enriquecedor!

Introdução: tradição que vive no copo

O floor malt, ou malte germinado no chão, é mais do que um insumo raro. É um elo entre a história cervejeira e o paladar moderno.

Vamos explorar como esse tipo de malte influencia lagers tchecas, cervejas britânicas históricas e como ele exige domínio técnico em cada etapa: da cevada à taça.

O que é Floor Malt?

O floor malt é produzido por meio de um processo tradicional em que os grãos germinam espalhados em camadas finas no chão, em galpões com temperatura e umidade controladas. Diferente da maltagem industrial, esse processo é manual, mais lento e preserva compostos sensoriais únicos.

Diferenças sensoriais: Floor Malt vs. Maltes modernos

Maltes como o Pilsen Weyermann são limpos, estáveis e fáceis de trabalhar. Já o floor malt oferece notas mais complexas: pão fermentado, herbal, floral, rusticidade e profundidade. Isso exige mais cuidado — mas recompensa quem sabe o que está fazendo.

A microbiota do ambiente importa

Produzido em galpões rústicos, o floor malt carrega também a assinatura da microbiota local. Esses microrganismos influenciam sutilmente o sabor do malte, o que não acontece nas maltarias industriais altamente assépticas.

Decocção: técnica essencial para maltes tradicionais

A decocção — técnica de aquecer partes da mostura — é quase obrigatória com floor malt. Ela ajuda a quebrar proteínas, liberar açúcares e controlar compostos indesejáveis, como o DMS (sulfeto de dimetila). Sem ela, o rendimento cai e sabores desagradáveis aparecem no produto.

Estilos que brilham com Floor Malted
✅ Lagers Tchecas (Pilsners, Tmavé, Polotmavé)
  • Perfil maltado arredondado
  • Pouca adstringência
  • Sensação de corpo e complexidade
✅ Ales históricas inglesas (Burton, Old Ale, IPA inglesa)
  • Floor malts britânicos como Chevalier e Haná trazem riqueza e estrutura
✅ Imperial Stouts e estilos intensos
  • Combinam bem com floor malts em fervuras longas e caramelizações

Gustavo compartilha a aplicação prática do floor malt nas cervejas da Koala, com foco na escola tcheca:

  • Closer to the Truth (lager clara com técnica de barril encerado)
  • Sličace (osmítica com 3% e complexidade surpreendente)
  • Principia, Manchester, Heio Heio (escura, polotmavé, doppelbock)

Eles importam maltes de diferentes genéticas e variedades, além de selecionarem lúpulos diretamente das fazendas.

Floor malt: não dá pra imitar

Henrique e Gustavo são enfáticos: não se replica o que o floor malt oferece. Misturar maltes comuns com melanoidina não gera o mesmo resultado. Quem prova, sente a diferença.

O elo final: levedura e serviço

Trabalhar com floor malt exige também leveduras específicas, como as fornecidas pela Levteck. E não se pode esquecer do serviço: copos, lavagem e temperatura final fazem parte do ritual de respeito ao produto.

Conclusão: mais do que malte, é cultura líquida

O floor malt é um ingrediente que ensina. Ele exige conhecimento, planejamento e respeito ao processo. Quando usado corretamente, entrega camadas de sabor que nenhuma combinação de maltes industriais consegue alcançar.

Em um mundo que valoriza cada vez mais a eficiência, o floor malt nos lembra que o tempo, o toque humano e a história ainda têm um lugar no copo!