#282 – Produzindo uma Hazy IPA sem álcool

Hazy IPA sem álcool

A produção de cervejas sem álcool tem ganhado cada vez mais espaço entre os cervejeiros caseiros e profissionais. A combinação entre técnica apurada, inovação sensorial e inclusão de novos perfis de consumidores transformou esse nicho em um dos mais promissores da cerveja artesanal.

Neste episódio do Brassagem Forte, Henrique Boaventura conversa com Tedesko Almeida, da Cervejaria Piwo (ES), sobre os desafios e soluções para criar uma Hazy IPA sem álcool com corpo, sabor e estabilidade — e o melhor: sem precisar de equipamentos industriais.

Com a parceria da Lamas Brewshop, da Hops Company, da Levteck e da Cerveja Stannis, acompanhe esse papo imperdível!

Por que produzir uma cerveja sem álcool artesanal?

De promessa caseira a tendência crescente

O primeiro lote da Hazy IPA sem álcool da Piwo nasceu de uma promessa do cervejeiro Tedesko à sua esposa grávida — uma grande apreciadora do estilo. A experiência doméstica foi tão bem-sucedida que se transformou em uma oportunidade de mercado. Em 2024, o setor sem álcool cresceu expressivamente no Brasil, com a Ambev registrando aumento de 20% nas vendas e a Heineken, 9%.

Novos públicos, novas possibilidades

As cervejas sem álcool permitem ampliar o consumo em ocasiões antes restritas, além de agradar quem busca baixo teor calórico, produtos mais saudáveis ou experiências sensoriais sem embriaguez. Tedesko resume bem: “É como reaprender a fazer cerveja”.

Qual estilo de cerveja é melhor para fazer sem álcool?

Hazy IPA: complexidade para compensar a falta de álcool

Estilos com perfil aromático intenso, como Hazy IPA, se mostram ideais para versões sem álcool. A complexidade de lúpulo e corpo permite mascarar a ausência de etanol, sem comprometer a experiência sensorial.

Outras opções promissoras

Estilos escuros e defumados, como Schwarzbier ou Grodziskie, também são boas alternativas. A dica é evitar cervejas extremamente limpas e leves, como as pilsners clássicas, que exigem precisão e equipamentos caros para entregar o mesmo resultado.

Como escolher a levedura certa para cerveja sem álcool?

LA-01 da Fermentis: o coração da fermentação

A Piwo utilizou a levedura LA-01 da Fermentis, que fermenta apenas açúcares simples, como glicose e frutose. Isso possibilita uma fermentação completa com baixa atenuação, sem precisar interromper o processo, o que evita sabores de mosto e garante estabilidade microbiológica.

Pitch e dicas para caseiros

  • Dose usada: cerca de 1g/L (200g para 210 litros)
  • Disponível em pacotes grandes (ainda sem versão fracionada no Brasil)

Como fazer a mosturação ideal para cervejas sem álcool?

Foco na produção de açúcares complexos

  • Temperatura: 74°C
  • pH: 5,4
  • Tempo: 40 minutos

Esse setup favorece a alfa-amilase, reduz a ação da beta-amilase e evita degradação de proteínas importantes para retenção de espuma.

Proporção e grist

  • 85% malte Pilsen
  • 15% aveia em flocos
  • Relação água/malte: ~2,7 L/kg
  • OG: 1.026 | FG: 1.023

A aveia contribui com corpo, cremosidade e espuma. Nas próximas versões, Tedesko pretende aumentar para 20–30%.

Como evitar o gosto de mosto em cervejas sem álcool?

Fermentação completa e uso de lúpulo ajudam

A fermentação completa com leveduras específicas gera compostos que suavizam o gosto de mosto cru. Além disso, a carga aromática dos lúpulos — especialmente extratos com menos matéria vegetal — ajuda a mascarar qualquer off-flavor, como o acetaldeído ou sabores metálicos.

Qual a melhor estratégia de lupulagem para Hazy sem álcool?

Carga balanceada e baixo risco de hop creep

  • Whirlpool: 5 g/L
  • Dry hopping: 8–10 g/L
  • Lúpulos usados: Nelson Sauvin e Riwaka
  • Extrato: Quantum (Hops Company)

A escolha por extratos ou cryo hops reduz a matéria verde e minimiza a atividade enzimática que poderia causar hop creep.

Como controlar o pH para garantir estabilidade e espuma?

Acidificação no final da fervura ou no fermentador

  • Alvo: pH 4.2 a 4.4
  • Agente: ácido lático
  • Momento: pós-fervura ou início da fermentação

Essa acidificação é crucial para evitar contaminações e prolongar a vida útil da cerveja, já que a baixa atividade fermentativa não reduz o pH naturalmente como em cervejas alcoólicas.

Qual perfil de água ideal para Hazy IPA sem álcool?

Foco em corpo e maciez

  • Cloreto: 200 ppm
  • Magnésio: 30–40 ppm
  • Sulfato: ~30 ppm

Essa água promove sensação de corpo, suavidade na boca e favorece os aromas frutados, evitando a secura excessiva que o sulfato em excesso pode causar.

Carbonatação, envase e pasteurização: o que muda?

Carbonatação padrão e envase em lata ou keg

  • Carbonatação: 2.5–2.7 volumes CO₂
  • Envase: não pasteurizado
  • Dica extra: mantenha refrigerada para maior estabilidade

Graças à boa fermentação, lúpulo e pH baixo, a Piwo optou por não pasteurizar, preservando o frescor dos lúpulos — especialmente os do Novo Mundo.

Faça você também!

Criar uma cerveja artesanal sem álcool é um exercício técnico, criativo e altamente gratificante. Com planejamento, é possível entregar uma experiência sensorial completa — com corpo, aroma e estabilidade —, mesmo em pequena escala.

A Hazy IPA sem álcool da Piwo é um exemplo de como a técnica e a curiosidade podem expandir os limites da cerveja artesanal. E como disse o Tedesko: “é uma forma de começar de novo. Reaprender, estudar, acompanhar cada passo — e, no final, ter uma cerveja de verdade nas mãos.”

#276 – A Hora Ácida: fermentadores para cervejas ácidas complexas

A Hora Ácida 276

Como a Fermentação Ácida Transforma a Cerveja: A Ciência Selvagem 

Introdução: a acidez como linguagem sensorial

Nesta série do Brassagem Forte, Henrique Boaventura convida mais uma vez Diego Simão, da Cervejaria Cozalinda, para um mergulho profundo no universo das cervejas ácidas, complexas e selvagens.

Entre barricas, ânforas e fermentadores de concreto, este episódio revela como o oxigênio, os microrganismos e o material do fermentador moldam o sabor, a acidez e a complexidade da cerveja. Um capítulo imperdível para quem quer entender o lado mais vivo e imprevisível da fermentação.

Com a parceria da Lamas Brewshop, da Hops Company, da Levteck e da Cerveja Stannis, não perca mais esse papo incrível!

A importância do fermentador na produção de cervejas ácidas

O oxigênio como vilão ou aliado?

Em fermentações convencionais, o oxigênio é evitado a todo custo. Mas, na produção de cervejas ácidas e cervejas selvagens, ele pode ser um aliado poderoso — desde que controlado com precisão. É aqui que entra o conceito de OTR (Oxygen Transmission Rate).

OTR: Oxygen Transmission Rate na prática

Diego explica que uma OTR controlada permite biotransformações complexas, gerando o “funk” típico das Brettanomyces e a rusticidade desejada desse tipo de levedura. Já em fermentadores com OTR muito baixa, como os de inox herméticos, o resultado tende a ser mais limpo, menos ácido e menos complexo.

Materiais dos fermentadores e seus impactos

Inox, vidro, madeira: qual escolher?
  • Inox é quase inerte e oferece controle.
  • Vidro é totalmente inerte, ideal para testes comparativos.
  • Madeira, especialmente barris, permite interação com o ambiente e micro-oxigenação contínua.

Fermentação aberta: onde está o limite?

Fermentar com o tanque aberto pode ser seguro nos primeiros dias. Depois disso, o risco de oxidação e presença de acetobactérias aumenta, trazendo sabores indesejados como vinagre.

Micro-organismos e oxigênio: uma dança bioquímica

Organismos como Brettanomyces e Pediococcus precisam de oxigênio para realizar transformações complexas que dão origem a sabores únicos. A profundidade que a Brett penetra na madeira (até 0,8 mm) mostra o quão difícil é sanitizar um barril.

Barricas, consistência e espontaneidade controlada

Existe fermentação realmente espontânea?

Segundo Diego, o uso de barricas com histórico de fermentações anteriores quebra a ideia de espontaneidade total. O foco é controle de população microbiana, não esterilidade — algo que permite consistência sem padronização.

Temperatura, sazonalidade e seus efeitos sensoriais

Durante o verão, a acidez lática na refermentação em garrafa aumenta. No inverno, o oposto acontece. Isso mostra como as condições ambientais influenciam diretamente o resultado da cerveja.

Fermentação caseira com baixa OTR: desafios e soluções

Post-mix como alternativa prática

Os fermentadores de post-mix oferecem uma área de contato reduzida com oxigênio. São acessíveis e adaptáveis, ideais para experimentações em casa. Diego recomenda até o uso paralelo de dois materiais diferentes e posterior blend.

Fermentadores com maior OTR: ampliando a complexidade

Quando o foco é complexidade sensorial, entram em cena materiais como:

  • Plástico (com ressalvas),
  • Madeira (em barricas maiores),
  • Ânforas de barro,
  • Cimento e concreto.

Cada um com sua taxa de oxigenação, permeabilidade e interação sensorial própria.

As ânforas na fermentação: tradição, terroir e inovação

As ânforas trazem consigo o conceito de terroir cerâmico: a argila da região onde são produzidas influencia diretamente o perfil da cerveja. Quanto maiores as ânforas, menor a OTR — o que permite estabilidade e delicadeza.

Projeto da Cozalinda: identidade a partir do solo

Diego compartilha o projeto de desenvolver ânforas com argilas catarinenses em parceria com arquitetos e artesãos locais. O objetivo é criar uma expressão geológica única da região na fermentação da cerveja.

Concreto, cimento e inovação sensorial

O uso de fermentadores de concreto e cerâmica permite controle preciso de oxigênio. Formatos ovaloides promovem convecção natural, movimentando os micro-organismos e aumentando a complexidade sensorial da bebida.

Granito e fermentadores de pedra: charme impraticável

Fermentadores escavados em granito são lindos, mas impraticáveis. A limpeza é difícil, o controle microbiológico é falho e o custo-benefício é ruim. Na prática, são mais enfeite do que solução técnica.

Fermentadores de plástico: acessibilidade com riscos

Os fermentadores de plástico são comuns, mas requerem atenção:

  • Tampas frouxas permitem oxigênio demais;
  • Headspace grande favorece contaminações;
  • Torneiras mal vedadas comprometem o lote.

Barris de madeira: romantismo, variáveis e desafios

A madeira confere caráter, mas também traz risco. Barris pequenos aumentam drasticamente a oxidação. A recomendação do Diego? Melhor um balde plástico do que um mini barril de 10 L.

Conclusão: Fermentação ácida é um laboratório vivo

A produção de cervejas ácidas e selvagens exige conhecimento técnico, controle microbiológico e liberdade criativa. Não existe fórmula mágica — cada fermentador, cada material e cada condição ambiental traz um novo desafio e uma nova possibilidade de sabor.

O recado do Diego é claro: não se trata apenas de escolher um recipiente, mas de entender o papel ativo do fermentador como agente sensorial. Para quem produz em casa ou profissionalmente, o caminho é estudar, testar e respeitar o processo. Porque é no imprevisto que mora a beleza das ácidas.