#279 – Água: BÔNUS – ajustando seu perfil de água

Brassagem Forte - Água

Ajuste de água na prática: aplicações em três estilos de cerveja

Introdução: a água como elemento final (e essencial)

Neste episódio bônus, que encerra a série sobre água no Brassagem Forte, Henrique Boaventura e Gabriela Lando, a Química Cervejeira, se aprofundam na aplicação prática dos conhecimentos discutidos em episódios anteriores.

A proposta? Ajustar a água para três estilos diferentes de cerveja utilizando dois perfis opostos: uma água de superfície (pouco mineralizada) e uma água de poço (alta alcalinidade).

O objetivo aqui não é apenas aplicar concentrações em um software como Brewfather ou Beersmith, mas entender o raciocínio por trás dos ajustes, seus impactos sensoriais e técnicos, e como alcançar o equilíbrio necessário para extrair o melhor de cada receita.

É mais um episódio com a parceria da Lamas Brewshop, da Hops Company, da Levteck e da Cerveja Stannis. O papo tá imperdível!

O que nos ensinou John Palmer?

Antes de entrar nos números, Gabriela resgata conceitos fundamentais do livro Water, de John Palmer:

  • Objetivo da correção da água: melhorar o sabor da cerveja, nunca complicar o processo.
  • Menos é mais: evitar excesso de mineralização, respeitando os limites recomendados para cada mineral.
  • Repetição e calibração: são necessários de 3 a 5 lotes para encontrar o ponto ideal.
  • Faixa de pH ideal da mostura: entre 5,2 e 5,6. Medir sempre com pH-metro calibrado.
  • Evite pressa e exageros: “Meça duas vezes, adicione uma.”
  • Não tenha medo de errar: experimente, mas com responsabilidade técnica e sanitária.

Os perfis de água utilizados

Água de superfície (padrão de rede urbana)

  • pH: 6,2
  • Cálcio (Ca): 6 ppm
  • Magnésio (Mg): 2 ppm
  • Sódio (Na): 5 ppm
  • Cloreto (Cl): 12 ppm
  • Sulfato (SO₄): 15 ppm
  • Bicarbonato (HCO₃): 10 ppm
  • Alcalinidade: 8 ppm
  • Alcalinidade residual: 2,5 ppm

Água de poço (alta alcalinidade)

  • pH: 7,1
  • Cálcio: 35 ppm
  • Magnésio: 7 ppm
  • Sódio: 13 ppm
  • Cloreto: 15 ppm
  • Sulfato: 0 ppm (abaixo do limite de detecção)
  • Bicarbonato: 160 ppm
  • Alcalinidade: 131 ppm
  • Alcalinidade residual: 102 ppm
       
ÁguaSuperficial (S)Poço (P)
pH6,27,1
Ca2+(cálcio)6 ppm35 ppm
Mg2+ (magnésio)2 ppm7 ppm
Na+ (sódio)5 ppm13 ppm
Cl (cloreto)12 ppm15 ppm
SO42- (sulfato)15 ppm0 ppm
HCO3 (bicarbonato)10 ppm160 ppm
Alcalinidade8 ppm131 ppm
RA2,5 (3 no Brewfather)102

Estudo de Caso 1: Cream Ale

Características do estilo

A Cream Ale é uma cerveja leve, limpa, neutra, refrescante e com leve caráter maltado. Altamente carbonatada, é ideal para consumo em atividades ao ar livre, com atenuação elevada e pouco amargor.

Receita base (brew in a bag)

  • 4,5 kg de malte Pilsen
  • 500 g de milho em flocos
  • 150 g de açúcar comum
  • Volume total de água: 34 L
  • Volume final de mostura: 21 L
  • Eficiência: 70%

Diretrizes de perfil de água (segundo Palmer)

Para uma cerveja clara, leve e com amargor de baixo a médio:

  • Cálcio: 50–100 ppm
  • Magnésio: até 30 ppm
  • Cloreto: até 100 ppm
  • Sulfato: até 50 ppm
  • Razão Sulfato/Cloreto: ~1,3
  • Alcalinidade residual: entre -30 e 0 ppm

Ajuste da água de superfície

Problema: Baixos níveis de cálcio e magnésio.
Solução proposta:

  • Aumentar cálcio para 60 ppm
  • Aumentar magnésio para 10 ppm (opcional)

Impacto da alteração:

  • Com cálcio e magnésio: alcalinidade residual = -40
  • Apenas cálcio: alcalinidade residual = -36

Adição de sais (para 34 L de água):

  • 3 g de cloreto de cálcio (CaCl₂)
  • 3,3 g de sulfato de cálcio (CaSO₄)

Resultado:

  • Sulfato = 70 ppm
  • Cloreto = 55 ppm
  • Razão ≈ 1,3
  • Alcalinidade residual = -31

Nota: Magnésio poderia ser adicionado, mas não foi neste caso para evitar ultrapassar a proporção ideal e não carregar o perfil sensorial.

Ajuste da água de poço

Problema: Alcalinidade muito elevada (102 ppm).
Adição dos mesmos sais (CaCl₂ e CaSO₄):

  • 2,8 g de cloreto de cálcio
  • 4,8 g de sulfato de cálcio

Resultado:

  • Cálcio = 87 ppm
  • Alcalinidade residual = 65 ppm

Solução complementar:

  • Acidificação com ácido lático a 80%
  • Previsão de adição: 4,5 mL para alcançar pH 5,6

Alerta importante:

  • Não confiar 100% nas previsões do Brewfather; sempre usar pH-metro calibrado durante a mostura.
Cream AleS (início)S (final)P (início)P (final)
Ca2+6 ppm53 ppm35 ppm86 ppm
Mg2+2 ppm2 ppm7 ppm7 ppm
Na+5 ppm5 ppm13 ppm13 ppm
Cl12 ppm55 ppm15 ppm55 ppm
SO42-15 ppm70 ppm0 ppm70 ppm
HCO310 ppm160 ppm
Alcalinidade8 ppm131 ppm
RA3-3110265
Acidificação?TalvezSim
Adições3 g de cloreto de cálcio (CaCl2)
3,3 g de sulfato de cálcio (CaSO4)
2,5 g de cloreto de cálcio (CaCl2)
4,2 g de sulfato de cálcio (CaSO4)
Volume34 L de água

Considerações técnicas importantes

  • Sais sempre vêm com nome e sobrenome: usar cloreto de cálcio e sulfato de cálcio implica em adicionar tanto o cátion (Ca²⁺) quanto o ânion (Cl⁻ ou SO₄²⁻). Isso afeta múltiplos parâmetros.
  • O pH é logarítmico, não linear: pequenas adições de ácido podem ter impactos desproporcionais. Ajuste com calma e com acompanhamento em tempo real.
  • Só ajuste pH depois da adição do malte: os maltes afetam fortemente o pH da mostura, especialmente maltes escuros ou cristal.
  • O ácido lático é o mais indicado para ajuste de pH: o fosfórico pode interferir com o cálcio e prejudicar o processo.

Estudo de Caso 2: American IPA

Características do estilo

Segundo o BJCP, a American IPA é uma cerveja clara, de teor alcoólico moderadamente alto, com destaque para o lúpulo — tanto no aroma quanto no amargor. Seu perfil de fermentação é limpo, com final seco e amargor assertivo.

Receita utilizada

Baseada na Punk IPA da BrewDog:

  • 6 kg de malte Pale
  • 330 g de Caramunique I
  • Mostura com 35,5 L de água, fervura com 31,8 L
  • Lote final: 21 L

Diretrizes de perfil de água para o estilo

Conforme Palmer:

  • Cálcio: 50–150 ppm
  • Magnésio: 0–30 ppm
  • Cloreto: 0–100 ppm
  • Sulfato: 100–400 ppm
  • Relação Sulfato:Cloreto: 2,5 a 4
  • Alcalinidade residual: -30 a +30 ppm

Ajuste da água de superfície

Objetivo: manter a intensidade de lúpulo sem excesso de minerais.

  • Sulfato: 200 ppm
  • Cloreto: 75 ppm → Razão: 2,7
  • Magnésio: 12 ppm para evitar excesso de cálcio
  • Cálcio: 103 ppm

Adições por 35,5 L de água:

  • 9,3 g de sulfato de cálcio (CaSO₄)
  • 13,5 g de sulfato de magnésio (MgSO₄)
  • 13,5 g de cloreto de cálcio (CaCl₂)

Resultado técnico:

  • pH estimado: ~5,4
  • Se necessário, ajuste com bicarbonato de sódio:
    • 2,5 g → aumenta alcalinidade residual para -30 ppm
    • Sódio resultante: 24 ppm

Ajuste da água de poço

Água com elevada alcalinidade exige maior atenção.

Adições por 35,5 L:

  • 7,1 g de CaSO₄
  • 8 g de MgSO₄
  • 3,4 g de CaCl₂

Resultados:

  • Cálcio = 116 ppm
  • Magnésio = 29 ppm
  • Alcalinidade residual = 31 ppm

Acidificação necessária: 1,3 mL de ácido lático (80%) para pH 5,6

American IPAS (início)S (final)P (início)P (final)
Ca2+6 ppm103 ppm35 ppm116 ppm
Mg2+2 ppm12 ppm7 ppm29 ppm
Na+5 ppm24 ppm13 ppm13 ppm
Cl12 ppm75 ppm15 ppm76 ppm
SO42-15 ppm200 ppm0 ppm200 ppm
HCO310 ppm160 ppm
Alcalinidade8 ppm131 ppm
RA3-3010231
Acidificação?NãoSim
Adições2,5 g de bicarbonato de sódio (NaHCO3)
3,5 g de cloreto de cálcio (CaCl2)9,3 g de sulfato de cálcio (CaSO4)3,5 g de sulfato de magnésio (MgSO4)
3,4 g de cloreto de cálcio (CaCl2)
7,1 g de sulfato de cálcio (CaSO4)8 g de sulfato de magnésio (MgSO4)
Volume35,5 L de água

Estudo de Caso 3: Irish Stout

Características do estilo

Estilo preto com sabor torrado pronunciado. Pode variar de levemente maltada até extremamente seca e amarga. O perfil sensorial remete a café e chocolate, com ou sem cremosidade, dependendo do método de serviço.

Receita

  • 3 kg de malte Pale
  • 650 g de cevada em flocos
  • 320 g de cevada torrada
  • 33,5 L de água de mostura, fervura com 31 L
  • Lote final: 21 L

Parâmetros ideais para o estilo (Palmer)

  • Cálcio: 50–75 ppm
  • Magnésio: 0–30 ppm
  • Cloreto e sulfato: 50–150 ppm cada
  • Relação: ~1:1
  • Alcalinidade residual: 60–120 ppm
  • Águas alcalinas são desejáveis

Ajuste com água superficial

Desafio: baixa alcalinidade pode levar a pH abaixo do ideal com maltes escuros.

Evitar uso de carbonato de cálcio: difícil solubilização.
Solução:

  • Usar bicarbonato de sódio para elevar a alcalinidade
  • Evitar práticas como adicionar sais sobre a cama de grãos — não há eficácia comprovada

Composição final da água (para 33,5 L):

  • 3,6 g de CaSO₄
  • 4,3 g de CaCl₂
  • 3,4 g de bicarbonato de sódio

Resultados:

  • Alcalinidade = 82 ppm
  • Cálcio = 66 ppm
  • Sódio = 33 ppm
  • Sulfato e cloreto = 75 ppm cada

Ajuste com água de poço

Vantagem: alcalinidade já elevada, ideal para maltes torrados.
Desafio: ausência de sulfato → necessário adicionar.

Adições (para 33,5 L):

  • 2 g de CaSO₄
  • 3,2 g de CaCl₂
  • 2,3 g de MgSO₄

Resultados:

  • Cálcio = 75 ppm
  • Magnésio = 14 ppm
  • Sulfato e cloreto = 60 ppm cada
  • Alcalinidade residual = 69 ppm

Atenção especial:

  • Mesmo com água alcalina, medir o pH é essencial.
  • Maltes escuros variam muito de cor real em relação ao valor estimado nas calculadoras (como Brewfather).

Ideal: solicitar ao fornecedor o EBC real dos maltes.

Irish StoutS (início)S (final)P (início)P (final)
Ca2+6 ppm66 ppm35 ppm75 ppm
Mg2+2 ppm2 ppm7 ppm14 ppm
Na+5 ppm33 ppm13 ppm13 ppm
Cl12 ppm75 ppm15 ppm60 ppm
SO42-15 ppm75 ppm0 ppm60 ppm
HCO310 ppm160 ppm
Alcalinidade8 ppm131 ppm
RA31910269
Acidificação?NãoSim
Adições3,4 g de bicarbonato de sódio (NaHCO3)
4,3 g de cloreto de cálcio (CaCl2)3,6 g de sulfato de cálcio (CaSO4)
3,2 g de cloreto de cálcio (CaCl2)
2 g de sulfato de cálcio (CaSO4)2,3 g de sulfato de magnésio (MgSO4)
Volume33,5 L de água

Conclusão: ajuste de a água é estratégia e prática

O ajuste do perfil de água é uma das ferramentas mais poderosas para a construção do perfil sensorial e técnico de uma cerveja. Como visto nos três exemplos — Cream Ale, American IPA e Irish Stout —, diferentes fontes de água e objetivos de estilo exigem estratégias distintas:

  • Águas pouco mineralizadas exigem complementação precisa de sais e atenção com o pH.
  • Águas de poço podem facilitar receitas escuras, mas exigem controle de minerais específicos.
  • Não há atalhos: medição de pH durante a mostura é obrigatória.
  • O uso consciente de sais (com “nome e sobrenome”) evita desequilíbrios técnicos.
  • Ferramentas como o Brewfather são úteis, mas não substituem a medição real com pH-metros calibrados.

E por fim, o ajuste de água é tanto uma ciência quanto uma arte. Exige testes, paciência, observação e curiosidade. Como resumiu Gabriela , o mantra que deve ficar após essa série é simples e direto:

“Meça o pH da mostura.”

Leituras recomendadas

  1. Água (Palmer & Kaminski) – Editora Krater
  2. How to Brew (John Palmer) – Edição em português ampliada
  3. Ciência da Cerveja (Luís Torre) – Tradução e edição por Gabriela Lando
  4. Química da Cerveja (Alfredo A. Muxel) – Professor da UFSC

Essas obras são ótimos pontos de partida (e aprofundamento) para quem deseja entender melhor como a água influencia — e pode transformar — a cerveja que você produz!

#275 – Água: perguntas e respostas

Brassagem Forte - Série Água

Como a qualidade da água afeta sua cerveja: perguntas e respostas

Encerrando a série ‘Água’

Henrique Boaventura e Gabriela Lando retornam com um último episódio da série Água, dedicada a esse que é o elemento mais subestimado – mas quiçá o mais importante – da cerveja.

Depois dos episódios #263 (fundamentos), #267 (íons, pH e ajustes) e #271 (perfis históricos e modificações), este #275 é especial, voltado exclusivamente para o esclarecimento de dúvidas dos ouvintes sobre o papel da água na produção de cervejas artesanais.

A água representa até 95% da composição de uma cerveja e influencia desde o sabor final até a eficiência da fermentação. Passados os conceitos teóricos, procedimentos práticos e as características e os estilos históricos de cerveja diretamente resultantes de perfis de águas em seus locais de origem, agora é hora de responder às principais perguntas da comunidade cervejeira.

Não perca o encerramento com chave de ouro dessa série fundamental, que conta com a parceria da Lamas Brewshop, da Hops Company, da Levteck e da Cerveja Stannis!

Tipos de água purificada e suas aplicações na cervejaria

Água destilada

Produzida por destilação, remove praticamente todos os sais minerais, microorganismos e compostos orgânicos. É considerada pura, mas pode conter gases dissolvidos. Tem desperdício mínimo de água no processo, mas não é comum para brassagens por não conter nenhum mineral.

Água desmineralizada (ou deionizada)

Obtida por resinas de troca iônica, remove cálcio, magnésio, sódio, cloreto, sulfato e outros íons. Pode conter alguma matéria orgânica residual, dependendo da filtragem. Sua pureza pode ser comprometida sem dupla filtragem.

Água de osmose reversa

Processo com membranas semipermeáveis que retém praticamente tudo exceto as moléculas de água. É o método mais eficaz para obter água “zerada” de íons e contaminantes. Entretanto, pode desperdiçar até 4–5 litros para cada litro purificado. Ideal para quem deseja montar um perfil de água a partir do zero.

Comparativo de desperdício

  • Destilada: mínimo desperdício (resíduo no balão)
  • Deionizada: moderado
  • Osmose reversa: alto desperdício (até 80%)

Filtros e suas funções: carvão ativado x troca iônica

Filtros de carvão ativado são fundamentais para remoção de cloro e cloramina. Já os de troca iônica trocam íons indesejados por outros, como cálcio por sódio. São tecnologias complementares e não substitutas uma da outra.

Importante: carvão ativado não remove minerais; troca iônica não remove cloro. Cada um tem uma função específica.

Quando e como analisar sua água cervejeira

Frequência recomendada

Mudanças sazonais afetam o perfil da água, por isso o ideal é fazer análises a cada estação. Para cervejeiros caseiros, duas vezes por ano é suficiente.

Onde realizar análises confiáveis

  • Lamas Bioshop (com foco no perfil cervejeiro)
  • Estações de tratamento estaduais (DMAE, Corsan, etc.)
  • Laboratórios comerciais especializados

As análises devem incluir íons como Ca²⁺, Mg²⁺, HCO₃⁻, Cl⁻, SO₄²⁻ e Na⁺. A Lamas oferece pacotes voltados para cervejeiros, com desconto para ouvintes do Brassagem Forte.

Problemas com água contaminada: excesso de ferro e manganês

Filtros de 3 ou 4 estágios (PP + carvão ativado) só removem partículas visíveis. Metais dissolvidos exigem filtros de troca iônica ou alternativas químicas.

Solução com ácido fosfórico

  • Adicione ácido até pH 5,5–5,7
  • Resfrie e decante por 24h
  • Separe sobrenadante com cuidado
  • Método descrito no livro “Água” de John Palmer

Cuidados com água de poço

Exigências legais

Segundo a Portaria 888/2021 do Ministério da Saúde, águas de poços devem ser analisadas semestralmente para parâmetros físicos, químicos e microbiológicos.

Poços rasos vs. profundos

Poços rasos estão mais expostos à contaminação (cemitérios, fossas). Poços profundos têm água mais estável, mas ainda exigem controle e tratamento.

Calibração correta do pH-metro

  • Utilize sempre duas soluções tampão (pH 7 e pH 4)
  • Não use solução vencida ou contaminada
  • Armazene o eletrodo em solução de KCl 3M
  • Calcule o slope se o aparelho fornecer leitura em mV
  • Evite limpar com papel ou armazenar a seco

Erro comum: medir pH da água sem malte. Sempre medir pH da mostura após 5 a 10 minutos, com amostra resfriada a 20–25°C.

Como a composição da água afeta o pH da mostura

Resistência à acidificação

Águas com alta concentração de bicarbonato e pouco cálcio exigem mais ácido para reduzir o pH. Exemplo: bicarbonato 125 ppm, cálcio 10 ppm → alta alcalinidade residual.

Maltes escuros ajudam a acidificar

Estilos como Porter e Stout se beneficiam de águas alcalinas. Os maltes escuros reduzem naturalmente o pH, compensando o excesso de bicarbonato.

Como corrigir pH ácido em mosturas escuras

Uso de bicarbonato de sódio

Aumenta o pH e adiciona sódio. Limite seguro: 50–75 ppm. Acima de 150 ppm há risco sensorial e problemas na fermentação. Cada 1 g/L adiciona 726 ppm de bicarbonato e 274 ppm de sódio.

Evite o uso de carbonato de cálcio ⚠

Pouco solúvel, ineficaz para ajustar pH em meio líquido. Preferível utilizar bicarbonato, com monitoramento dos níveis de sódio.

Quando adicionar ácido: antes ou depois do malte?

Sempre depois. Ajustar o pH da água antes de arriar o malte pode causar perda de atividade enzimática. O ideal é esperar 5 a 10 minutos após início da mostura.

Redução de alcalinidade por fervura

Método
  • Ferva a água por 15 minutos
  • Mexa ou aerar
  • Decante após esfriar
  • Separa o sobrenadante

Funciona bem para águas com bicarbonato e cálcio acima de 60 ppm. Ineficiente para magnésio e outros íons.

Mitos e verdades sobre sais

Cloreto de cálcio causa clorofenol?

Não. Clorofenol é causado por cloro livre ou cloraminas. O cloreto é um íon inofensivo, importante para corpo e maciez.

Excesso de cloreto afeta a carbonatação?

Não diretamente. O efeito é sensorial: o perfil “aveludado” da água rica em cloreto pode mascarar a sensação de gás.

Ácido ascórbico para remover cloro: cuidados

1 g de ácido ascórbico remove cloro de ~58 L de água com 5 ppm. Excesso pode reduzir o pH e afetar enzimas. Nunca use pastilhas de vitamina C — utilize ácido puro, grau alimentício ou analítico.

Cloreto de cálcio: anidro vs. dihidratado

Beersmith assume CaCl2 anidro. Se usar o dihidratado, aplique o fator de correção:

  • 1 g anidro ≈ 1,32 g de dihidratado
  • Massa molar anidro: 110 g/mol
  • Massa molar dihidratado: 147 g/mol

Lembre-se que o CaCl2 é higroscópico — sua massa pode variar com a umidade do ambiente.

Perda de minerais na mostura e fervura

Estudos mostram que até 88% dos íons metálicos podem ser retidos na cama de grãos. O zinco, por exemplo, deve ser adicionado no fermentador para garantir disponibilidade à levedura.

Conclusão: a espinha dorsal da sua cerveja

Como síntese, podemos dizer que este episódio defende e atesta que a água vai muito além da hidratação do mosto. É uma variável estratégica para aroma, corpo, fermentação e estabilidade da cerveja. Por isso, vale muito receber o máximo de atenção possível!

Se sua cerveja está aquém do esperado, talvez o segredo esteja não nos lúpulos, mas na torneira que jorra esse elemento abundante na produção, mas ainda um bocado negligenciado.

#271 – Águas Históricas e Correções

águas históricas cervejeiras

A série mais aguardada do Brassagem Forte, dedicada à água na produção cervejeira, chegou ao seu terceiro episódio.

Dando continuidade aos temas anteriores, o básico sobre água (ep. #263) e os íons cervejeiros, pH e alcalinidade (ep. #267), este capítulo trata das águas históricas, influentes no desenvolvimento da indústria e de vários estilos, e as correções desse ingrediente fundamental.

Siga esse papo conosco até o episódio 275, com um programa especial de perguntas e respostas!

Com a parceria da Lamas Brewshop, da Hops Company, da Levteck e da Cerveja Stannis, Henrique Boaventura e Gabriela Lando, a Química Cervejeira, vão trazer tudo sobre as minúcias, os detalhes e os ajustes na composição da água para melhorar a sua cerveja.

A importância da água na produção de cervejas históricas

Por que estudar as águas históricas?

A água desempenhou um papel essencial na criação dos estilos clássicos de cerveja. Henrique e Gabriela explicam que, diferentemente de outros insumos como lúpulo e malte, que podem ser facilmente transportados, a água sempre foi um fator limitante. Até 95% da composição da cerveja é água, e transportar grandes volumes nunca foi viável historicamente.

E, além disso, nos séculos passados, não se investigava nem se preocupava com a composição da água. O que não levou cervejeiros do passado a investirem nas minúcias relativas a esse ingrediente.

Assim, as características da água local influenciaram diretamente o desenvolvimento de estilos específicos em determinadas regiões.

A geologia e os perfis de água

Os minerais presentes na água de uma região são consequência direta da geologia local. Águas subterrâneas, em especial, carregam íons das rochas e solos adjacentes, criando perfis únicos que influenciam o processo cervejeiro. No livro A Evolução da Cerveja em 50 Estilos, traduzido e editado por Gabriela Lando para a Editora Krater, são destacados três perfis principais:

  • Perfil rico em carbonato de cálcio: encontrado em Londres, Dublin e Munique, ideal para estilos escuros.
  • Perfil rico em sulfato de cálcio: característico de Burton-upon-Trent, proporciona o amargor típico das Pale Ales.
  • Perfil quase zerado de minerais: presente em Pilsen, na República Tcheca, permitindo que os ingredientes locais brilhem na Pilsner.

Estilos de cerveja e a influência da água local

A origem das Dry Stouts e a conexão com as Porters

A história das Dry Stouts está intrinsecamente conectada às Porters. O termo stout originalmente era um adjetivo em inglês, significando “forte”, e passou a denominar cervejas mais robustas. O primeiro registro das Porters data de 1760, mas já eram produzidas desde 1720 na região de Londres.

Um mito popular da época dizia que apenas as águas do rio Tâmisa poderiam produzir boas Porters. Embora exagerado, o mito tinha um fundo de verdade: as águas do sul da Inglaterra, ricas em carbonato de cálcio, eram ideais para cervejas escuras. Ao serem fervidas, tornavam-se mais macias, favorecendo a extração da cor dos maltes escuros.

Evolução das técnicas cervejeiras: o papel da água e do malte na qualidade das Porters e Stouts

A introdução do malte black, ou patent malt, no início do século XIX, revolucionou a produção de cervejas escuras. Com o uso do coque como combustível para a torrefação, o novo método trouxe uniformidade e novas possibilidades de sabor. A substituição do malte brown pelo malte black foi especialmente evidente na Guinness, que passou a usar apenas malte pale e black a partir de 1828, contribuindo para o perfil seco e torrado das Irish Stouts.

Recomendações técnicas para perfis de água cervejeira

Faixas recomendadas para estilos clássicos

Dry Stout:

  • Cálcio: 50-75 ppm
  • Sulfato: 50-150 ppm
  • Cloreto: 50-100 ppm
  • Alcalinidade: 80-150 ppm
  • Alcalinidade residual: 30-90 ppm

IPA (India Pale Ale):

  • Cálcio: 50-150 ppm
  • Sulfato: 100-300 ppm (podendo chegar a 400 ppm para West Coast IPAs)
  • Cloreto: 0-100 ppm
  • Alcalinidade: 40-120 ppm
  • Alcalinidade residual: -30 a 30 ppm (cervejas claras) e 0 a 60 ppm (Amber ou escuras)

Conclusão: a água como pilar da cerveja de qualidade

Ao longo do episódio, deste texto e, de modo geral, desta série, viemos explorando detalhadamente a importância da água na produção de cervejas e como o tratamento adequado pode transformar o resultado final. Desde o entendimento da composição inicial da água, passando pela remoção de componentes indesejáveis até a adição precisa de sais minerais, cada etapa requer conhecimento e precisão! ✅

O conhecimento aliado à prática resulta em cervejas que encantam o paladar e perpetuam a tradição cervejeira com excelência. Ao equilibrar os perfis minerais da água e dominar as técnicas de ajuste, os cervejeiros podem criar produtos que se destacam tanto pela complexidade sensorial quanto pela fidelidade aos estilos históricos, com seus respectivos parâmetros específicos.

#267 – Água: Íons Cervejeiros, pH e Alcalinidade

Água na Cervejaria: Como os Íons, pH e Alcalinidade Influenciam Sua Cerveja

A qualidade da água cervejeira é um dos fatores mais importantes na produção de cerveja artesanal e industrial. Você já se perguntou por que algumas cervejas têm um amargor mais seco e outras um dulçor mais equilibrado? A resposta está nos íons da água, no pH do mosto e na alcalinidade.

Com a parceria da Lamas Brewshop, da Hops Company, da Levteck e da Cerveja Stannis, ao lado de Gabriela Lando, a Química Cervejeira, você vai aprender tudo sobre ajustes na composição da água para melhorar a sua cerveja.

Se você quer elevar o nível da sua produção e entender os detalhes técnicos de como a química da água afeta o sabor e a fermentação, continue a leitura!

E se perdeu o primeiro episódio desta série sobre água, não deixe de conferi-lo também.

O Papel da Água na Produção de Cerveja

A água compõe mais de 90% da cerveja e, dependendo de sua composição, pode influenciar diretamente no sabor, no corpo e no aroma da bebida. Fatores como pH, alcalinidade e íons minerais afetam desde a conversão de açúcares na mosturação até a fermentação e a percepção sensorial da cerveja final.

Os 3 Fatores-Chave da Água Cervejeira:
  1. Íons essenciais: determinam a dureza da água e influenciam a fermentação e o sabor.
  2. pH do mosto: afeta a ação das enzimas e a eficiência da fermentação.
  3. Alcalinidade: mensura a resistência da água às variações de pH, impactando os ajustes necessários.

Vamos explorar cada um desses pontos com mais detalhes!

1. O Que São Íons e Como Influenciam a Cerveja?

Os íons são moléculas ou átomos carregados eletricamente, e o seu nível na composição mineral da água pode alterar o equilíbrio da sua cerveja.

Existem dois tipos principais de íons:

  • Íons funcionais → Participam diretamente da fermentação e produção da cerveja.
  • Íons sensoriais → Afetam o aroma, sabor e corpo da cerveja.
Principais Íons Funcionais na Água Cervejeira
  • Cálcio (Ca²⁺) → O íon mais importante para a cerveja. Ele ajuda a diminuir o pH da mostura, estabiliza enzimas e melhora a floculação da levedura. A faixa recomendada é de 50-150 ppm.
  • Magnésio (Mg²⁺) → Essencial para a saúde das leveduras, mas em excesso pode ter efeito laxativo. O ideal é manter entre 0-40 ppm.
  • Zinco (Zn²⁺) → Atua no metabolismo da levedura e melhora a fermentação. No entanto, acima de 1 ppm pode ser tóxico.
Principais Íons Sensoriais na Água
  • Sódio (Na⁺) → Acentua o dulçor e pode melhorar o corpo da cerveja, mas em excesso (> 150 ppm) pode torná-la salgada.
  • Cloreto (Cl⁻) → Realça o corpo e o dulçor da cerveja. Faixa ideal: 0-100 ppm.
  • Sulfato (SO₄²⁻) → Destaca o amargor do lúpulo, deixando a cerveja mais seca. Faixa recomendada: 0-250 ppm.

Importante: O equilíbrio entre sulfato e cloreto define se a cerveja será mais amarga ou maltada.

2. pH: O Segredo para uma Mosturação Eficiente

O pH da mostura tem um impacto direto na eficiência enzimática e na fermentação. A faixa ideal para a mosturação está entre 5,2 e 5,6.

  • pH baixo (ácido) → Favorece a conversão de açúcares e melhora a estabilidade da cerveja.
  • pH alto (básico) → Pode reduzir a atividade enzimática e deixar a cerveja com sabor adstringente.
Como Ajustar o pH da Mostura?
  • Ácidos → Adição de ácido lático ou ácido fosfórico para reduzir o pH.
  • Sais → O cálcio ajuda a reduzir o pH naturalmente durante a mosturação.
  • Malte Acidificado → Reduz o pH sem alterar significativamente o sabor da cerveja.

Dica prática: Evite usar regras lineares para ajustar o pH (exemplo: “1 ml de ácido reduz 0,5 do pH”), pois a escala de pH é logarítmica, o que significa que a relação entre ácido e ajuste de pH não é direta!

3. Alcalinidade: O Impacto na Correção de Água

A alcalinidade da água indica sua resistência à variação do pH. Quanto maior a alcalinidade, mais difícil será reduzir o pH da mosturação.

Como Controlar a Alcalinidade?

✅Para reduzir a alcalinidade, utilize ácidos (como ácido lático) ou aumente o cálcio na água.
✅ Ferver a água pode precipitar carbonatos e reduzir a alcalinidade.
✅ Utilize água com baixa alcalinidade para cervejas mais leves e claras.

4. Relação Sulfato-Cloreto: Como Ajustar o Equilíbrio da Cerveja?

A proporção entre sulfato e cloreto determina o perfil da cerveja:

  • 0,8 – 1,5 → Cerveja equilibrada entre malte e lúpulo.
  • < 0,8 → Cerveja mais maltada e adocicada.
  • > 1,5 → Cerveja mais amarga e seca.

➡ Para cervejas mais lupuladas, aumente o sulfato.
➡ Para cervejas mais maltadas, aumente o cloreto.

5. Como Remover Cloro da Água?

O cloro residual na água pode formar clorofenóis, que dão à cerveja um sabor medicinal ou plástico. Para evitar esse problema:

✅ Use um filtro de carvão ativado.
✅ Adicione ácido ascórbico para neutralizar o cloro.
Ferva a água por 15 minutos para volatilizar o cloro.

Atenção: Não confunda cloreto (Cl⁻), que pode ser benéfico, com cloro livre (Cl₂), que deve ser removido.

Conclusão: Como Melhorar Sua Cerveja com Ajustes na Água?

Teste sua água → Entenda sua composição antes de fazer ajustes.
Ajuste o pH da mostura → Idealmente entre 5,2 e 5,6.
Mantenha um equilíbrio entre sulfato e cloreto → Evite excessos.
Remova o cloro → Use filtros ou fervura para evitar sabores indesejáveis.

Com esse conhecimento, você pode otimizar sua água cervejeira e melhorar a qualidade das suas cervejas. Faça ajustes estratégicos e experimente diferentes perfis para encontrar o equilíbrio perfeito para cada estilo!