#281 – Dia de Julgamento: Blonde Ale

Dia de Julgamento - Blonde Ale

Se você quer saber como se avalia uma cerveja artesanal de forma técnica, este conteúdo é para você! Neste episódio especial do Brassagem Forte, Henrique Boaventura e Gabriela Lando, a Química Cervejeira, realizam a primeira edição do Dia do Julgamento, avaliando, segundo os critérios do BJCP, uma Blonde Ale caseira enviada pelo Taylor, membro da Cerva Serra – Cervejeiros da Serra Gaúcha.

Com a parceria da Lamas Brewshop, da Hops Company, da Levteck e da Cerveja Stannis, acompanhe a avaliação completa da Blonde Ale, entenda os pontos fortes, os erros, os acertos e, principalmente, descubra como melhorar suas próprias brassagens.

O estilo Blonde Ale

A Blonde Ale é uma cerveja de origem americana, de alta fermentação, leve e com alta drinkabilidade. Seu perfil sensorial é limpo, maltado, com baixo amargor e sutis notas de lúpulo floral, frutado ou herbal. Apresenta corpo médio-baixo, final seco e não deve ter sabores agressivos.

Ideal para quem quer uma cerveja fácil de beber, mas sem abrir mão de equilíbrio e qualidade sensorial.

Ficha Técnica da Produção

  • Estilo: Blonde Ale (BJCP 18A)
  • Malte: 100% Pilsen (Agrária)
  • Lúpulo: Brewers Gold (fresco, colhido no dia)
  • Levedura: Safale US-05 (3ª geração)
  • Água: Água de poço, sem análise prévia
  • Adições de lúpulo:
    • 100g na fervura (60 min.)
    • 100g no whirlpool (flameout)

A cerveja foi produzida no CEAB (Centro Estadual de Diagnóstico e Pesquisa em Alimentos e Bebidas) em Caxias do Sul, utilizando lúpulo fresco cultivado localmente, sem análises laboratoriais sobre alfácidos ou perfil da água.

Análise sensorial completa da Blonde Ale

Aroma

  • Percepções:
    • Malte de baixa intensidade (pão, biscoito, cereal)
    • Leve dulçor (caramelo e mel), sugerindo início de oxidação
    • Lúpulo floral e frutado (pêssego, maçã) em baixa intensidade
    • Esterificação perceptível, gerando notas de frutas amarelas e cítricas
  • Problemas: Aroma não completamente limpo, leve oxidação
  • Nota: 7/12

Aparência

  • Percepções:
    • Cor amarelo palha a dourado claro
    • Límpida, porém não cristalina (leve turbidez)
    • Espuma branca, densa, de ótima formação e retenção, com aspecto cremoso
  • Nota: 3/3

Sabor

  • Percepções:
    • Malte presente (pão, biscoito, cereal) com leve dulçor
    • Lúpulo floral e herbal em baixa intensidade
    • Frutado lembrando drupas (pêssego, damasco)
    • Amargor baixo, final seco
    • Leve acidez acompanhada de notas de oxidação (caramelo e mel)
  • Nota: 11/20

Sensação na boca

  • Percepções:
    • Corpo médio-baixo a baixo
    • Carbonatação média-alta, conferindo vivacidade
    • Sem adstringência, sem aquecimento alcoólico
    • Secura perceptível, o que impacta na cremosidade e na maciez
  • Notas:
    • Gabriela: 4/5 (descontou pela falta de cremosidade)
    • Henrique: 5/5

Impressão geral

  • Conclusão:
    Cerveja honesta, dentro do estilo, mas afetada por problemas técnicos como leve oxidação e acidez inesperada. A secura excessiva reduz um pouco a drinkabilidade.
  • Sugestões:
    • Analisar e ajustar o perfil da água (evitar uso de água não tratada)
    • Minimizar exposição ao oxigênio após fermentação e no envase
    • Melhorar relação malte/água para aumentar o corpo
    • Revisar o uso de lúpulo fresco e sua influência no perfil sensorial
  • Notas:
    • Gabriela: 6/10
    • Henrique: 6/10

Pontuação Final

  • Gabriela: 30 pontos
  • Henrique: 32 pontos

Classificação BJCP: Muito boa – dentro do estilo, mas com algumas falhas perceptíveis.

Bastidores da produção: desafios e aprendizados

  • A cerveja foi feita em um evento coletivo, com uso de lúpulo fresco da plantação experimental do CEAB.
  • A água utilizada era de poço, sem análise, ajustada empiricamente com ácido lático na brassagem.
  • Levedura Safale US-05 em terceira geração, sem cultivo prévio, o que pode ter contribuído para a esterificação excessiva.
  • O lúpulo Brewers Gold foi colhido no dia, sem parâmetros precisos de alfácido, o que dificultou o controle do amargor.
  • A leve acidez pode ter origem na acidificação mal calculada da água ou em fermentação com micro-organismos indesejados.

Considerações finais dos juízes:

Apesar dos desafios, a cerveja ficou boa, bebível e dentro do estilo. O feedback técnico permite que Taylor melhore sua próxima brassagem, especialmente nos controles de água, fermentação e oxigênio.

Conclusão: como avaliar cervejas e evoluir como cervejeiro caseiro

O Dia do Julgamento não se pretende como mero exercício de análise de amostras. É uma aula sobre como avaliar cerveja artesanal, entender seus defeitos e acertos, e usar o feedback como ferramenta de evolução.

Taylor, com quase 10 anos de experiência como cervejeiro caseiro, mostra que, mesmo depois de muita prática, cada brassagem traz novos aprendizados — especialmente quando lidamos com variáveis pouco controladas como água desconhecida ou lúpulo fresco.

✅ O aprendizado aqui vale para qualquer cervejeiro caseiro: controle rigoroso da água, da fermentação e da oxidação são fundamentais para transformar uma boa cerveja em uma excelente cerveja.

#280 – Como coletar microrganismos selvagens para fermentação espontânea de cerveja

A Hora Ácida

A Hora Ácida #5 com Henrique Boaventura e Diego Simão (Cozalinda)

As cervejas selvagens de fermentação espontânea conquistaram espaço entre os estilos mais intrigantes e complexos da cena artesanal. Neste episódio, Henrique Boaventura recebe novamente Diego Simão, da Cervejaria Cozalinda, para uma verdadeira aula sobre coleta de microrganismos selvagens — aqueles que não vêm de pacotinho, mas sim do meio ambiente, frutas, flores e até do mel de abelhas nativas.

O episódio também conta com relatos do Rodrigo Jardini (da Yarun Fermentados) e da pesquisadora Carola Carvalho (Space Beer Project).

Com a parceria da Lamas Brewshop, da Hops Company, da Levteck e da Cerveja Stannis, prepare-se para uma jornada ácida, cheia de cuidado técnico e que pode abrir caminho para experiências sensoriais únicas!

O que são microrganismos selvagens e onde encontrá-los?

Antes de existirem cepas isoladas e vendidas comercialmente, todas as fermentações eram conduzidas por microrganismos presentes nos utensílios, ingredientes ou no próprio ambiente. As cervejas ácidas de fermentação espontânea ainda se baseiam nesse princípio ancestral: captar leveduras selvagens e bactérias do meio ambiente e deixá-las fazer o trabalho de fermentação.

Esses microrganismos estão por toda parte, mas há locais que oferecem maior probabilidade de captura eficaz:

  • Fontes de açúcar simples, como frutas, tubérculos ou flores, são os ambientes mais promissores.
  • Ambientes historicamente fermentativos, como engenhos de farinha ou colmeias, oferecem colônias já estabelecidas.
  • O ar também pode carregar microrganismos, mas sua taxa de inóculo é imprevisível.

Exemplos práticos de coleta: mandioca, frutas, ar e mel

Projeto Manipueira: a mandioca como meio vivo

Um dos destaques da Cozalinda é a Manipueira Selvagem, feita com suco de mandioca (manipueira) fermentado espontaneamente. Ao coletar esse suco em engenhos centenários, onde a mandioca é processada com madeiras antigas, cria-se um ambiente propício à coleta de microrganismos adaptados.

Importante: a manipueira usada não é adicionada à cerveja, mas sim utilizada como meio de fermentação e propagação inicial.

Mosto exposto ao ar: técnica arriscada

Durante um período, muitos cervejeiros tentaram expor mosto resfriado ao ar em ambientes naturais. Embora pareça romântico (e até remeta às Lambics belgas), esse método apresenta baixa taxa de sucesso e alto risco sanitário. A falta de controle sobre o tipo e quantidade de microrganismos que se instalam compromete a segurança e o resultado sensorial da cerveja.

Frutas como meio de coleta

As frutas são excelentes candidatas: carregam açúcar, e muitas vezes já estão colonizadas por leveduras selvagens e outros microrganismos. O ideal é coletar frutas frescas, amassá-las com luvas higienizadas e colocá-las para fermentar em suco pasteurizado ou mosto resfriado. Evite frutas com bolores visíveis — micro-organismos oxidativos tendem a ser indesejados.

Existem duas abordagens:

  • Coleta ativa, onde a fruta é usada como inoculante primário num meio (mosto ou suco).
  • Adjunto fermentativo, onde a fruta inteira é adicionada à cerveja pronta, como nas Lambics com frutas. Essa técnica adiciona novos açúcares e microrganismos, alterando o perfil sensorial da bebida.

Boas frutas para coletar:

  • Jabuticaba
  • Araçá
  • Amora
  • Framboesa
  • Cereja

Frutas com sementes grandes (como pitanga) podem gerar adstringência ou liberar substâncias indesejadas como ácido cianídrico.

Frutas, flores, pólen e ceiva como fontes microbianas

Flores

Flores são ricas em microrganismos graças à presença de açúcares e ao trânsito de insetos. Apesar disso, a coleta direta a partir de flores exige cuidados laboratoriais — preferencialmente com isolamento em meio de cultura, como ágar. A baixa quantidade de açúcares e a diversidade microbiana tornam o processo mais técnico e menos previsível.

Pólen

O pólen de abelhas nativas é um meio altamente promissor. A pesquisadora Carola Carvalho, do Space Beer Project, destaca que ele contém leveduras específicas da colmeia, capazes de fermentar espontaneamente. O uso exige cuidado, pois poucas delas são Saccharomyces e nem todas geram resultados sensoriais agradáveis.

Ceiva de árvores

Em regiões como Escandinávia e Itália, a ceiva (como a do maple) é usada na produção de bebidas fermentadas. Com baixo teor de açúcar, ela exige concentrações e coletas específicas. Apesar de menos comum, é uma fonte viável de microrganismos.

Mel de abelhas nativas: um campo fértil de fermentações

Diego Simão compartilha sua experiência com abelhas mirim e mandaçaia. O mel dessas abelhas, com menor teor de açúcar e maior umidade, fermenta com facilidade. Após coleta com seringas sanitizadas, o mel é propagado sucessivamente em suco de maçã pasteurizado e depois em mosto, até alcançar uma colônia estável.

Rodrigo, da Yarun Fermentados, também utiliza mel de abelhas tubuna, propagando os microrganismos em mosto lupulado e posteriormente em mosto mais neutro. A escolha do meio interfere diretamente no tipo de levedura selecionada e no resultado sensorial final.

Etapas e cuidados fundamentais na coleta

Equipamentos e higiene

  • Luvas, frascos de vidro esterilizados, seringas novas e airlocks são obrigatórios.
  • O uso de equipamentos inadequados pode comprometer toda a coleta.

Preparo do meio de propagação

  • Adicionar álcool (3–5%) ao mosto ajuda a inibir microrganismos patogênicos.
  • Ajustar o pH para cerca de 4,5 é outra medida de segurança.
  • Mostos com diferentes níveis de IBU permitem selecionar perfis específicos (mais ou menos acidez, mais resistência bacteriana, etc).

Propagações sequenciais e análise sensorial

  • Nunca use a primeira fermentação diretamente na cerveja final.
  • Realize de 2 a 5 propagações em meios diferentes.
  • Avalie o perfil sensorial, fermentativo e estabilidade antes de escalar a produção.

Conclusão: ciência, cuidado e criatividade na coleta selvagem

A coleta de microrganismos selvagens para uso cervejeiro exige muito mais do que “abrir a janela e esperar a mágica acontecer”. Ela demanda conhecimento técnico, cuidado com a segurança alimentar e, principalmente, paciência. Seja com frutas, flores, mel ou mandioca, cada meio oferece desafios e oportunidades únicas de expressão sensorial.

Como reforçado por Diego, Rodrigo e Carola, é preciso entender que fermentação espontânea não significa ausência de método, mas sim respeito à diversidade da natureza, com técnica e propósito. No fim das contas, como diz Henrique, tudo tem um começo — e ele pode estar em uma jabuticabeira no quintal, num engenho centenário ou numa colmeia urbana.

#279 – Água: BÔNUS – ajustando seu perfil de água

Brassagem Forte - Água

Ajuste de água na prática: aplicações em três estilos de cerveja

Introdução: a água como elemento final (e essencial)

Neste episódio bônus, que encerra a série sobre água no Brassagem Forte, Henrique Boaventura e Gabriela Lando, a Química Cervejeira, se aprofundam na aplicação prática dos conhecimentos discutidos em episódios anteriores.

A proposta? Ajustar a água para três estilos diferentes de cerveja utilizando dois perfis opostos: uma água de superfície (pouco mineralizada) e uma água de poço (alta alcalinidade).

O objetivo aqui não é apenas aplicar concentrações em um software como Brewfather ou Beersmith, mas entender o raciocínio por trás dos ajustes, seus impactos sensoriais e técnicos, e como alcançar o equilíbrio necessário para extrair o melhor de cada receita.

É mais um episódio com a parceria da Lamas Brewshop, da Hops Company, da Levteck e da Cerveja Stannis. O papo tá imperdível!

O que nos ensinou John Palmer?

Antes de entrar nos números, Gabriela resgata conceitos fundamentais do livro Water, de John Palmer:

  • Objetivo da correção da água: melhorar o sabor da cerveja, nunca complicar o processo.
  • Menos é mais: evitar excesso de mineralização, respeitando os limites recomendados para cada mineral.
  • Repetição e calibração: são necessários de 3 a 5 lotes para encontrar o ponto ideal.
  • Faixa de pH ideal da mostura: entre 5,2 e 5,6. Medir sempre com pH-metro calibrado.
  • Evite pressa e exageros: “Meça duas vezes, adicione uma.”
  • Não tenha medo de errar: experimente, mas com responsabilidade técnica e sanitária.

Os perfis de água utilizados

Água de superfície (padrão de rede urbana)

  • pH: 6,2
  • Cálcio (Ca): 6 ppm
  • Magnésio (Mg): 2 ppm
  • Sódio (Na): 5 ppm
  • Cloreto (Cl): 12 ppm
  • Sulfato (SO₄): 15 ppm
  • Bicarbonato (HCO₃): 10 ppm
  • Alcalinidade: 8 ppm
  • Alcalinidade residual: 2,5 ppm

Água de poço (alta alcalinidade)

  • pH: 7,1
  • Cálcio: 35 ppm
  • Magnésio: 7 ppm
  • Sódio: 13 ppm
  • Cloreto: 15 ppm
  • Sulfato: 0 ppm (abaixo do limite de detecção)
  • Bicarbonato: 160 ppm
  • Alcalinidade: 131 ppm
  • Alcalinidade residual: 102 ppm
       
ÁguaSuperficial (S)Poço (P)
pH6,27,1
Ca2+(cálcio)6 ppm35 ppm
Mg2+ (magnésio)2 ppm7 ppm
Na+ (sódio)5 ppm13 ppm
Cl (cloreto)12 ppm15 ppm
SO42- (sulfato)15 ppm0 ppm
HCO3 (bicarbonato)10 ppm160 ppm
Alcalinidade8 ppm131 ppm
RA2,5 (3 no Brewfather)102

Estudo de Caso 1: Cream Ale

Características do estilo

A Cream Ale é uma cerveja leve, limpa, neutra, refrescante e com leve caráter maltado. Altamente carbonatada, é ideal para consumo em atividades ao ar livre, com atenuação elevada e pouco amargor.

Receita base (brew in a bag)

  • 4,5 kg de malte Pilsen
  • 500 g de milho em flocos
  • 150 g de açúcar comum
  • Volume total de água: 34 L
  • Volume final de mostura: 21 L
  • Eficiência: 70%

Diretrizes de perfil de água (segundo Palmer)

Para uma cerveja clara, leve e com amargor de baixo a médio:

  • Cálcio: 50–100 ppm
  • Magnésio: até 30 ppm
  • Cloreto: até 100 ppm
  • Sulfato: até 50 ppm
  • Razão Sulfato/Cloreto: ~1,3
  • Alcalinidade residual: entre -30 e 0 ppm

Ajuste da água de superfície

Problema: Baixos níveis de cálcio e magnésio.
Solução proposta:

  • Aumentar cálcio para 60 ppm
  • Aumentar magnésio para 10 ppm (opcional)

Impacto da alteração:

  • Com cálcio e magnésio: alcalinidade residual = -40
  • Apenas cálcio: alcalinidade residual = -36

Adição de sais (para 34 L de água):

  • 3 g de cloreto de cálcio (CaCl₂)
  • 3,3 g de sulfato de cálcio (CaSO₄)

Resultado:

  • Sulfato = 70 ppm
  • Cloreto = 55 ppm
  • Razão ≈ 1,3
  • Alcalinidade residual = -31

Nota: Magnésio poderia ser adicionado, mas não foi neste caso para evitar ultrapassar a proporção ideal e não carregar o perfil sensorial.

Ajuste da água de poço

Problema: Alcalinidade muito elevada (102 ppm).
Adição dos mesmos sais (CaCl₂ e CaSO₄):

  • 2,8 g de cloreto de cálcio
  • 4,8 g de sulfato de cálcio

Resultado:

  • Cálcio = 87 ppm
  • Alcalinidade residual = 65 ppm

Solução complementar:

  • Acidificação com ácido lático a 80%
  • Previsão de adição: 4,5 mL para alcançar pH 5,6

Alerta importante:

  • Não confiar 100% nas previsões do Brewfather; sempre usar pH-metro calibrado durante a mostura.
Cream AleS (início)S (final)P (início)P (final)
Ca2+6 ppm53 ppm35 ppm86 ppm
Mg2+2 ppm2 ppm7 ppm7 ppm
Na+5 ppm5 ppm13 ppm13 ppm
Cl12 ppm55 ppm15 ppm55 ppm
SO42-15 ppm70 ppm0 ppm70 ppm
HCO310 ppm160 ppm
Alcalinidade8 ppm131 ppm
RA3-3110265
Acidificação?TalvezSim
Adições3 g de cloreto de cálcio (CaCl2)
3,3 g de sulfato de cálcio (CaSO4)
2,5 g de cloreto de cálcio (CaCl2)
4,2 g de sulfato de cálcio (CaSO4)
Volume34 L de água

Considerações técnicas importantes

  • Sais sempre vêm com nome e sobrenome: usar cloreto de cálcio e sulfato de cálcio implica em adicionar tanto o cátion (Ca²⁺) quanto o ânion (Cl⁻ ou SO₄²⁻). Isso afeta múltiplos parâmetros.
  • O pH é logarítmico, não linear: pequenas adições de ácido podem ter impactos desproporcionais. Ajuste com calma e com acompanhamento em tempo real.
  • Só ajuste pH depois da adição do malte: os maltes afetam fortemente o pH da mostura, especialmente maltes escuros ou cristal.
  • O ácido lático é o mais indicado para ajuste de pH: o fosfórico pode interferir com o cálcio e prejudicar o processo.

Estudo de Caso 2: American IPA

Características do estilo

Segundo o BJCP, a American IPA é uma cerveja clara, de teor alcoólico moderadamente alto, com destaque para o lúpulo — tanto no aroma quanto no amargor. Seu perfil de fermentação é limpo, com final seco e amargor assertivo.

Receita utilizada

Baseada na Punk IPA da BrewDog:

  • 6 kg de malte Pale
  • 330 g de Caramunique I
  • Mostura com 35,5 L de água, fervura com 31,8 L
  • Lote final: 21 L

Diretrizes de perfil de água para o estilo

Conforme Palmer:

  • Cálcio: 50–150 ppm
  • Magnésio: 0–30 ppm
  • Cloreto: 0–100 ppm
  • Sulfato: 100–400 ppm
  • Relação Sulfato:Cloreto: 2,5 a 4
  • Alcalinidade residual: -30 a +30 ppm

Ajuste da água de superfície

Objetivo: manter a intensidade de lúpulo sem excesso de minerais.

  • Sulfato: 200 ppm
  • Cloreto: 75 ppm → Razão: 2,7
  • Magnésio: 12 ppm para evitar excesso de cálcio
  • Cálcio: 103 ppm

Adições por 35,5 L de água:

  • 9,3 g de sulfato de cálcio (CaSO₄)
  • 13,5 g de sulfato de magnésio (MgSO₄)
  • 13,5 g de cloreto de cálcio (CaCl₂)

Resultado técnico:

  • pH estimado: ~5,4
  • Se necessário, ajuste com bicarbonato de sódio:
    • 2,5 g → aumenta alcalinidade residual para -30 ppm
    • Sódio resultante: 24 ppm

Ajuste da água de poço

Água com elevada alcalinidade exige maior atenção.

Adições por 35,5 L:

  • 7,1 g de CaSO₄
  • 8 g de MgSO₄
  • 3,4 g de CaCl₂

Resultados:

  • Cálcio = 116 ppm
  • Magnésio = 29 ppm
  • Alcalinidade residual = 31 ppm

Acidificação necessária: 1,3 mL de ácido lático (80%) para pH 5,6

American IPAS (início)S (final)P (início)P (final)
Ca2+6 ppm103 ppm35 ppm116 ppm
Mg2+2 ppm12 ppm7 ppm29 ppm
Na+5 ppm24 ppm13 ppm13 ppm
Cl12 ppm75 ppm15 ppm76 ppm
SO42-15 ppm200 ppm0 ppm200 ppm
HCO310 ppm160 ppm
Alcalinidade8 ppm131 ppm
RA3-3010231
Acidificação?NãoSim
Adições2,5 g de bicarbonato de sódio (NaHCO3)
3,5 g de cloreto de cálcio (CaCl2)9,3 g de sulfato de cálcio (CaSO4)3,5 g de sulfato de magnésio (MgSO4)
3,4 g de cloreto de cálcio (CaCl2)
7,1 g de sulfato de cálcio (CaSO4)8 g de sulfato de magnésio (MgSO4)
Volume35,5 L de água

Estudo de Caso 3: Irish Stout

Características do estilo

Estilo preto com sabor torrado pronunciado. Pode variar de levemente maltada até extremamente seca e amarga. O perfil sensorial remete a café e chocolate, com ou sem cremosidade, dependendo do método de serviço.

Receita

  • 3 kg de malte Pale
  • 650 g de cevada em flocos
  • 320 g de cevada torrada
  • 33,5 L de água de mostura, fervura com 31 L
  • Lote final: 21 L

Parâmetros ideais para o estilo (Palmer)

  • Cálcio: 50–75 ppm
  • Magnésio: 0–30 ppm
  • Cloreto e sulfato: 50–150 ppm cada
  • Relação: ~1:1
  • Alcalinidade residual: 60–120 ppm
  • Águas alcalinas são desejáveis

Ajuste com água superficial

Desafio: baixa alcalinidade pode levar a pH abaixo do ideal com maltes escuros.

Evitar uso de carbonato de cálcio: difícil solubilização.
Solução:

  • Usar bicarbonato de sódio para elevar a alcalinidade
  • Evitar práticas como adicionar sais sobre a cama de grãos — não há eficácia comprovada

Composição final da água (para 33,5 L):

  • 3,6 g de CaSO₄
  • 4,3 g de CaCl₂
  • 3,4 g de bicarbonato de sódio

Resultados:

  • Alcalinidade = 82 ppm
  • Cálcio = 66 ppm
  • Sódio = 33 ppm
  • Sulfato e cloreto = 75 ppm cada

Ajuste com água de poço

Vantagem: alcalinidade já elevada, ideal para maltes torrados.
Desafio: ausência de sulfato → necessário adicionar.

Adições (para 33,5 L):

  • 2 g de CaSO₄
  • 3,2 g de CaCl₂
  • 2,3 g de MgSO₄

Resultados:

  • Cálcio = 75 ppm
  • Magnésio = 14 ppm
  • Sulfato e cloreto = 60 ppm cada
  • Alcalinidade residual = 69 ppm

Atenção especial:

  • Mesmo com água alcalina, medir o pH é essencial.
  • Maltes escuros variam muito de cor real em relação ao valor estimado nas calculadoras (como Brewfather).

Ideal: solicitar ao fornecedor o EBC real dos maltes.

Irish StoutS (início)S (final)P (início)P (final)
Ca2+6 ppm66 ppm35 ppm75 ppm
Mg2+2 ppm2 ppm7 ppm14 ppm
Na+5 ppm33 ppm13 ppm13 ppm
Cl12 ppm75 ppm15 ppm60 ppm
SO42-15 ppm75 ppm0 ppm60 ppm
HCO310 ppm160 ppm
Alcalinidade8 ppm131 ppm
RA31910269
Acidificação?NãoSim
Adições3,4 g de bicarbonato de sódio (NaHCO3)
4,3 g de cloreto de cálcio (CaCl2)3,6 g de sulfato de cálcio (CaSO4)
3,2 g de cloreto de cálcio (CaCl2)
2 g de sulfato de cálcio (CaSO4)2,3 g de sulfato de magnésio (MgSO4)
Volume33,5 L de água

Conclusão: ajuste de a água é estratégia e prática

O ajuste do perfil de água é uma das ferramentas mais poderosas para a construção do perfil sensorial e técnico de uma cerveja. Como visto nos três exemplos — Cream Ale, American IPA e Irish Stout —, diferentes fontes de água e objetivos de estilo exigem estratégias distintas:

  • Águas pouco mineralizadas exigem complementação precisa de sais e atenção com o pH.
  • Águas de poço podem facilitar receitas escuras, mas exigem controle de minerais específicos.
  • Não há atalhos: medição de pH durante a mostura é obrigatória.
  • O uso consciente de sais (com “nome e sobrenome”) evita desequilíbrios técnicos.
  • Ferramentas como o Brewfather são úteis, mas não substituem a medição real com pH-metros calibrados.

E por fim, o ajuste de água é tanto uma ciência quanto uma arte. Exige testes, paciência, observação e curiosidade. Como resumiu Gabriela , o mantra que deve ficar após essa série é simples e direto:

“Meça o pH da mostura.”

Leituras recomendadas

  1. Água (Palmer & Kaminski) – Editora Krater
  2. How to Brew (John Palmer) – Edição em português ampliada
  3. Ciência da Cerveja (Luís Torre) – Tradução e edição por Gabriela Lando
  4. Química da Cerveja (Alfredo A. Muxel) – Professor da UFSC

Essas obras são ótimos pontos de partida (e aprofundamento) para quem deseja entender melhor como a água influencia — e pode transformar — a cerveja que você produz!

#278 – Brassando com Estilo: Rye IPA

Brassando com Estilo - Rye IPA

Rye IPA: guia completo para produzir a India Pale Ale com centeio

O que é a Rye IPA?

As specialty IPAs surgem como uma ramificação das tradicionais American IPAs, criadas para destacar características específicas que justificam sua separação. A Rye IPA (ou IPA com centeio) é uma dessas variações modernas, trazendo um diferencial sensorial interessante: o uso de malte de centeio.

Segundo o BJCP (Beer Judge Certification Program), a Rye IPA é essencialmente uma American IPA com adição de malte de centeio, o que confere um sabor condimentado, lembrando pão apimentado, com corpo aveludado e cremoso. Além disso, o final costuma ser mais seco, com notas de cereais — tudo isso, claro, dependendo da composição da receita.

Com a parceria da Lamas Brewshop, da Hops Company, da Levteck e da Cerveja Stannis, na companhia do químico e cervejeiro Duan Ceola, exploramos os detalhes e as melhores abordagens para a produção desse instigante estilo contemporâneo.

Perfil Sensorial da Rye IPA

Aroma

O aroma predominante segue o padrão das American IPAs, com lúpulos intensos trazendo notas de frutas tropicais, frutas de caroço, cítricos, resina, pinho e até frutas vermelhas ou melão. Em segundo plano, há um leve toque apimentado do malte de centeio, complementado por um perfil de fermentação limpo, com ésteres e álcool leves e opcionais.

Aparência

A coloração varia entre dourado médio e âmbar claro. A turbidez leve é aceitável, especialmente pela presença do centeio. A espuma costuma ser de cor branca, com formação e retenção boas.

Sabor

O lúpulo é o protagonista, com intensidade de médio a muito alto. O suporte maltado é limpo, de baixo a médio-baixo, podendo trazer leves notas de caramelo e tostado. O centeio contribui com um sabor picante e apimentado perceptível, o que reforça a secura no final do gole.

Sensação na boca

O corpo varia de médio-leve a médio, com textura macia e até levemente cremosa. A carbonatação tende a ser média ou média-alta, sem aspereza. Um leve aquecimento alcoólico é aceitável.

Comparação com outras IPAs

A Rye IPA é considerada uma variação da American IPA e deve ter o caráter de centeio perceptível. Caso contrário, deve ser inscrita como uma 21A – American IPA. Sensorialmente, é uma cerveja mais seca, picante e cremosa do que a maioria das American IPAs, com um final persistente e condimentado.

Parâmetros Técnicos da Rye IPA

  • OG (Densidade Inicial): 1.056 – 1.075
  • FG (Densidade Final): 1.008 – 1.014
  • IBU: 50 – 75
  • SRM: 6 – 14
  • ABV: 5,5 – 8%
  • Exemplos comerciais: Founders Red Rye IPA e Sierra Nevada Ruthless Rye

Maltes e o papel do centeio

Existem várias formas de centeio que podem ser usadas em uma Rye IPA:

  • Malte de centeio: contém enzimas que ajudam na conversão de amido, traz dulçor, picância, corpo e viscosidade ao mosto.
  • Centeio em flocos ou grão cru: não tem enzimas, mas contribui para retenção de espuma e sensação sedosa, embora possa complicar a filtração.

É essencial escolher insumos de qualidade, evitando centeios enriquecidos com metais (como os vendidos para alimentação humana), que podem oxidar a cerveja e deixá-la escura e opaca.

Criando sua receita de Rye IPA

Proporções sugeridas

  • 15% Malte de Centeio
  • 80% Malte Pilsen ou Pale Ale
  • 5% Malte Biscuit (para adicionar leve toque torrado, semelhante ao Maris Otter)

Malte Biscuit agrega sabor sutil e combina bem com lúpulos. Já o malte Viena pode acelerar a oxidação sensorial da cerveja. Maltes caramelos/crystal devem ser usados com moderação (até 2%).

Estratégias de mostura e uso de enzimas

O centeio contém alto teor de beta-glucanos, o que pode tornar a mostura complexa, especialmente em BIAB. Recomenda-se:

  • Parada protéica entre 45–55 °C por 10 a 15 minutos (uso acima de 15%)
  • Uso de enzimas como beta-glucanase ou amilase
  • Conhecimento do equipamento para evitar perda de retenção de espuma

Lúpulos para Rye IPA: modernos e clássicos

Na fervura
  • Citra, Columbus ou Magnum
  • 1 g/L a 30 minutos do fim da fervura
Whirlpool
  • Aida Rosetti CryoHops: 5 g/L a 40–60 °C por 20 minutos
Dry Hopping
  • 1ª adição: 4 g/L de Citra
  • 2ª adição: 3 g/L de Galaxy, Riwaka, Motueka
Lúpulos clássicos que combinam

Centennial, Cascade, Columbus e Chinook funcionam muito bem com o centeio, trazendo perfil “old school” resinoso e herbáceo.

Escolha da Levedura

Opções com perfil neutro:

  • US-05 – confiável
  • K-97 – subestimada, ótima floculação e interação com lúpulos

Fermentação ideal entre 16 °C e 17 °C.

Perfil de Água e pH

  • 100 ppm Sulfato (CaSO₄)
  • 50 ppm Cloreto (CaCl₂)
  • 50 ppm Cloreto (NaCl)
  • pH de mostura: 5.2 a 5.4
  • Baixa alcalinidade favorece leve turbidez desejada

Carbonatação Ideal

  • Entre 2.5 e 2.7 volumes de CO₂
  • Abaixo disso: sensação empapucenta
  • Acima disso: frisante e agressiva

Receita Modelo

Grãos:
  • 80% Malte Pilsen
  • 5% Malte Biscuit
  • 15% Malte de Centeio
Água:
  • 100 ppm Sulfato (CaSO₄)
  • 50 ppm Cloreto (CaCl₂)
  • 50 ppm Cloreto (NaCl)
Lúpulos:
  • Citra (1 g/L – 30 min)
  • Aida Rosetti CryoHops (5 g/L – Whirlpool a 40–60 °C)
  • Dry Hopping: 4 g/L Citra + 3 g/L Galaxy
Levedura:
  • K-97 (pitching 0,75, 17 °C)
Mostura:
  • Parada protéica: 15 min a ~53 °C
  • 40 min a 63 °C
  • 15 min a 72 °C
  • Mashout opcional
pH:
  • Mostura: 5.2
  • Fervura: 5.15–5.2
  • Mosto final: ~5.1

Conclusão: Uma IPA para quem busca mais complexidade

A Rye IPA é uma expressão criativa e ousada dentro do universo das IPAs. Sua construção exige atenção a detalhes técnicos — do uso de enzimas à seleção de lúpulos, do controle do pH à escolha da levedura. O centeio, quando bem trabalhado, entrega complexidade, corpo e uma picância que desafiam o paladar e convidam à experimentação.

Embora pouco representada em concursos e ainda rara no mercado, a Rye IPA oferece grande potencial sensorial e espaço para inovação. Seja com lúpulos modernos ou clássicos, em perfil turvo ou límpido, essa cerveja mostra que tradição e criatividade podem coexistir no copo.

#277 – Floor Malt: o malte artesanal que transforma estilos clássicos de cerveja

Floor malt

Neste episódio do Brassagem Forte, Henrique Boaventura convida Gustavo Simoni, da Koala San Brew, para uma conversa sobre floor malt, ingrediente distinto, especial, obtido por processos tradicionais, com potencial enorme no resultado final da sua cerveja!

Com a parceria da Lamas Brewshop, da Hops Company, da Levteck e da Cerveja Stannis, vem com a gente pra mais um papo enriquecedor!

Introdução: tradição que vive no copo

O floor malt, ou malte germinado no chão, é mais do que um insumo raro. É um elo entre a história cervejeira e o paladar moderno.

Vamos explorar como esse tipo de malte influencia lagers tchecas, cervejas britânicas históricas e como ele exige domínio técnico em cada etapa: da cevada à taça.

O que é Floor Malt?

O floor malt é produzido por meio de um processo tradicional em que os grãos germinam espalhados em camadas finas no chão, em galpões com temperatura e umidade controladas. Diferente da maltagem industrial, esse processo é manual, mais lento e preserva compostos sensoriais únicos.

Diferenças sensoriais: Floor Malt vs. Maltes modernos

Maltes como o Pilsen Weyermann são limpos, estáveis e fáceis de trabalhar. Já o floor malt oferece notas mais complexas: pão fermentado, herbal, floral, rusticidade e profundidade. Isso exige mais cuidado — mas recompensa quem sabe o que está fazendo.

A microbiota do ambiente importa

Produzido em galpões rústicos, o floor malt carrega também a assinatura da microbiota local. Esses microrganismos influenciam sutilmente o sabor do malte, o que não acontece nas maltarias industriais altamente assépticas.

Decocção: técnica essencial para maltes tradicionais

A decocção — técnica de aquecer partes da mostura — é quase obrigatória com floor malt. Ela ajuda a quebrar proteínas, liberar açúcares e controlar compostos indesejáveis, como o DMS (sulfeto de dimetila). Sem ela, o rendimento cai e sabores desagradáveis aparecem no produto.

Estilos que brilham com Floor Malted
✅ Lagers Tchecas (Pilsners, Tmavé, Polotmavé)
  • Perfil maltado arredondado
  • Pouca adstringência
  • Sensação de corpo e complexidade
✅ Ales históricas inglesas (Burton, Old Ale, IPA inglesa)
  • Floor malts britânicos como Chevalier e Haná trazem riqueza e estrutura
✅ Imperial Stouts e estilos intensos
  • Combinam bem com floor malts em fervuras longas e caramelizações

Gustavo compartilha a aplicação prática do floor malt nas cervejas da Koala, com foco na escola tcheca:

  • Closer to the Truth (lager clara com técnica de barril encerado)
  • Sličace (osmítica com 3% e complexidade surpreendente)
  • Principia, Manchester, Heio Heio (escura, polotmavé, doppelbock)

Eles importam maltes de diferentes genéticas e variedades, além de selecionarem lúpulos diretamente das fazendas.

Floor malt: não dá pra imitar

Henrique e Gustavo são enfáticos: não se replica o que o floor malt oferece. Misturar maltes comuns com melanoidina não gera o mesmo resultado. Quem prova, sente a diferença.

O elo final: levedura e serviço

Trabalhar com floor malt exige também leveduras específicas, como as fornecidas pela Levteck. E não se pode esquecer do serviço: copos, lavagem e temperatura final fazem parte do ritual de respeito ao produto.

Conclusão: mais do que malte, é cultura líquida

O floor malt é um ingrediente que ensina. Ele exige conhecimento, planejamento e respeito ao processo. Quando usado corretamente, entrega camadas de sabor que nenhuma combinação de maltes industriais consegue alcançar.

Em um mundo que valoriza cada vez mais a eficiência, o floor malt nos lembra que o tempo, o toque humano e a história ainda têm um lugar no copo!

#276 – A Hora Ácida: fermentadores para cervejas ácidas complexas

A Hora Ácida 276

Como a Fermentação Ácida Transforma a Cerveja: A Ciência Selvagem 

Introdução: a acidez como linguagem sensorial

Nesta série do Brassagem Forte, Henrique Boaventura convida mais uma vez Diego Simão, da Cervejaria Cozalinda, para um mergulho profundo no universo das cervejas ácidas, complexas e selvagens.

Entre barricas, ânforas e fermentadores de concreto, este episódio revela como o oxigênio, os microrganismos e o material do fermentador moldam o sabor, a acidez e a complexidade da cerveja. Um capítulo imperdível para quem quer entender o lado mais vivo e imprevisível da fermentação.

Com a parceria da Lamas Brewshop, da Hops Company, da Levteck e da Cerveja Stannis, não perca mais esse papo incrível!

A importância do fermentador na produção de cervejas ácidas

O oxigênio como vilão ou aliado?

Em fermentações convencionais, o oxigênio é evitado a todo custo. Mas, na produção de cervejas ácidas e cervejas selvagens, ele pode ser um aliado poderoso — desde que controlado com precisão. É aqui que entra o conceito de OTR (Oxygen Transmission Rate).

OTR: Oxygen Transmission Rate na prática

Diego explica que uma OTR controlada permite biotransformações complexas, gerando o “funk” típico das Brettanomyces e a rusticidade desejada desse tipo de levedura. Já em fermentadores com OTR muito baixa, como os de inox herméticos, o resultado tende a ser mais limpo, menos ácido e menos complexo.

Materiais dos fermentadores e seus impactos

Inox, vidro, madeira: qual escolher?
  • Inox é quase inerte e oferece controle.
  • Vidro é totalmente inerte, ideal para testes comparativos.
  • Madeira, especialmente barris, permite interação com o ambiente e micro-oxigenação contínua.

Fermentação aberta: onde está o limite?

Fermentar com o tanque aberto pode ser seguro nos primeiros dias. Depois disso, o risco de oxidação e presença de acetobactérias aumenta, trazendo sabores indesejados como vinagre.

Micro-organismos e oxigênio: uma dança bioquímica

Organismos como Brettanomyces e Pediococcus precisam de oxigênio para realizar transformações complexas que dão origem a sabores únicos. A profundidade que a Brett penetra na madeira (até 0,8 mm) mostra o quão difícil é sanitizar um barril.

Barricas, consistência e espontaneidade controlada

Existe fermentação realmente espontânea?

Segundo Diego, o uso de barricas com histórico de fermentações anteriores quebra a ideia de espontaneidade total. O foco é controle de população microbiana, não esterilidade — algo que permite consistência sem padronização.

Temperatura, sazonalidade e seus efeitos sensoriais

Durante o verão, a acidez lática na refermentação em garrafa aumenta. No inverno, o oposto acontece. Isso mostra como as condições ambientais influenciam diretamente o resultado da cerveja.

Fermentação caseira com baixa OTR: desafios e soluções

Post-mix como alternativa prática

Os fermentadores de post-mix oferecem uma área de contato reduzida com oxigênio. São acessíveis e adaptáveis, ideais para experimentações em casa. Diego recomenda até o uso paralelo de dois materiais diferentes e posterior blend.

Fermentadores com maior OTR: ampliando a complexidade

Quando o foco é complexidade sensorial, entram em cena materiais como:

  • Plástico (com ressalvas),
  • Madeira (em barricas maiores),
  • Ânforas de barro,
  • Cimento e concreto.

Cada um com sua taxa de oxigenação, permeabilidade e interação sensorial própria.

As ânforas na fermentação: tradição, terroir e inovação

As ânforas trazem consigo o conceito de terroir cerâmico: a argila da região onde são produzidas influencia diretamente o perfil da cerveja. Quanto maiores as ânforas, menor a OTR — o que permite estabilidade e delicadeza.

Projeto da Cozalinda: identidade a partir do solo

Diego compartilha o projeto de desenvolver ânforas com argilas catarinenses em parceria com arquitetos e artesãos locais. O objetivo é criar uma expressão geológica única da região na fermentação da cerveja.

Concreto, cimento e inovação sensorial

O uso de fermentadores de concreto e cerâmica permite controle preciso de oxigênio. Formatos ovaloides promovem convecção natural, movimentando os micro-organismos e aumentando a complexidade sensorial da bebida.

Granito e fermentadores de pedra: charme impraticável

Fermentadores escavados em granito são lindos, mas impraticáveis. A limpeza é difícil, o controle microbiológico é falho e o custo-benefício é ruim. Na prática, são mais enfeite do que solução técnica.

Fermentadores de plástico: acessibilidade com riscos

Os fermentadores de plástico são comuns, mas requerem atenção:

  • Tampas frouxas permitem oxigênio demais;
  • Headspace grande favorece contaminações;
  • Torneiras mal vedadas comprometem o lote.

Barris de madeira: romantismo, variáveis e desafios

A madeira confere caráter, mas também traz risco. Barris pequenos aumentam drasticamente a oxidação. A recomendação do Diego? Melhor um balde plástico do que um mini barril de 10 L.

Conclusão: Fermentação ácida é um laboratório vivo

A produção de cervejas ácidas e selvagens exige conhecimento técnico, controle microbiológico e liberdade criativa. Não existe fórmula mágica — cada fermentador, cada material e cada condição ambiental traz um novo desafio e uma nova possibilidade de sabor.

O recado do Diego é claro: não se trata apenas de escolher um recipiente, mas de entender o papel ativo do fermentador como agente sensorial. Para quem produz em casa ou profissionalmente, o caminho é estudar, testar e respeitar o processo. Porque é no imprevisto que mora a beleza das ácidas.

#275 – Água: perguntas e respostas

Brassagem Forte - Série Água

Como a qualidade da água afeta sua cerveja: perguntas e respostas

Encerrando a série ‘Água’

Henrique Boaventura e Gabriela Lando retornam com um último episódio da série Água, dedicada a esse que é o elemento mais subestimado – mas quiçá o mais importante – da cerveja.

Depois dos episódios #263 (fundamentos), #267 (íons, pH e ajustes) e #271 (perfis históricos e modificações), este #275 é especial, voltado exclusivamente para o esclarecimento de dúvidas dos ouvintes sobre o papel da água na produção de cervejas artesanais.

A água representa até 95% da composição de uma cerveja e influencia desde o sabor final até a eficiência da fermentação. Passados os conceitos teóricos, procedimentos práticos e as características e os estilos históricos de cerveja diretamente resultantes de perfis de águas em seus locais de origem, agora é hora de responder às principais perguntas da comunidade cervejeira.

Não perca o encerramento com chave de ouro dessa série fundamental, que conta com a parceria da Lamas Brewshop, da Hops Company, da Levteck e da Cerveja Stannis!

Tipos de água purificada e suas aplicações na cervejaria

Água destilada

Produzida por destilação, remove praticamente todos os sais minerais, microorganismos e compostos orgânicos. É considerada pura, mas pode conter gases dissolvidos. Tem desperdício mínimo de água no processo, mas não é comum para brassagens por não conter nenhum mineral.

Água desmineralizada (ou deionizada)

Obtida por resinas de troca iônica, remove cálcio, magnésio, sódio, cloreto, sulfato e outros íons. Pode conter alguma matéria orgânica residual, dependendo da filtragem. Sua pureza pode ser comprometida sem dupla filtragem.

Água de osmose reversa

Processo com membranas semipermeáveis que retém praticamente tudo exceto as moléculas de água. É o método mais eficaz para obter água “zerada” de íons e contaminantes. Entretanto, pode desperdiçar até 4–5 litros para cada litro purificado. Ideal para quem deseja montar um perfil de água a partir do zero.

Comparativo de desperdício

  • Destilada: mínimo desperdício (resíduo no balão)
  • Deionizada: moderado
  • Osmose reversa: alto desperdício (até 80%)

Filtros e suas funções: carvão ativado x troca iônica

Filtros de carvão ativado são fundamentais para remoção de cloro e cloramina. Já os de troca iônica trocam íons indesejados por outros, como cálcio por sódio. São tecnologias complementares e não substitutas uma da outra.

Importante: carvão ativado não remove minerais; troca iônica não remove cloro. Cada um tem uma função específica.

Quando e como analisar sua água cervejeira

Frequência recomendada

Mudanças sazonais afetam o perfil da água, por isso o ideal é fazer análises a cada estação. Para cervejeiros caseiros, duas vezes por ano é suficiente.

Onde realizar análises confiáveis

  • Lamas Bioshop (com foco no perfil cervejeiro)
  • Estações de tratamento estaduais (DMAE, Corsan, etc.)
  • Laboratórios comerciais especializados

As análises devem incluir íons como Ca²⁺, Mg²⁺, HCO₃⁻, Cl⁻, SO₄²⁻ e Na⁺. A Lamas oferece pacotes voltados para cervejeiros, com desconto para ouvintes do Brassagem Forte.

Problemas com água contaminada: excesso de ferro e manganês

Filtros de 3 ou 4 estágios (PP + carvão ativado) só removem partículas visíveis. Metais dissolvidos exigem filtros de troca iônica ou alternativas químicas.

Solução com ácido fosfórico

  • Adicione ácido até pH 5,5–5,7
  • Resfrie e decante por 24h
  • Separe sobrenadante com cuidado
  • Método descrito no livro “Água” de John Palmer

Cuidados com água de poço

Exigências legais

Segundo a Portaria 888/2021 do Ministério da Saúde, águas de poços devem ser analisadas semestralmente para parâmetros físicos, químicos e microbiológicos.

Poços rasos vs. profundos

Poços rasos estão mais expostos à contaminação (cemitérios, fossas). Poços profundos têm água mais estável, mas ainda exigem controle e tratamento.

Calibração correta do pH-metro

  • Utilize sempre duas soluções tampão (pH 7 e pH 4)
  • Não use solução vencida ou contaminada
  • Armazene o eletrodo em solução de KCl 3M
  • Calcule o slope se o aparelho fornecer leitura em mV
  • Evite limpar com papel ou armazenar a seco

Erro comum: medir pH da água sem malte. Sempre medir pH da mostura após 5 a 10 minutos, com amostra resfriada a 20–25°C.

Como a composição da água afeta o pH da mostura

Resistência à acidificação

Águas com alta concentração de bicarbonato e pouco cálcio exigem mais ácido para reduzir o pH. Exemplo: bicarbonato 125 ppm, cálcio 10 ppm → alta alcalinidade residual.

Maltes escuros ajudam a acidificar

Estilos como Porter e Stout se beneficiam de águas alcalinas. Os maltes escuros reduzem naturalmente o pH, compensando o excesso de bicarbonato.

Como corrigir pH ácido em mosturas escuras

Uso de bicarbonato de sódio

Aumenta o pH e adiciona sódio. Limite seguro: 50–75 ppm. Acima de 150 ppm há risco sensorial e problemas na fermentação. Cada 1 g/L adiciona 726 ppm de bicarbonato e 274 ppm de sódio.

Evite o uso de carbonato de cálcio ⚠

Pouco solúvel, ineficaz para ajustar pH em meio líquido. Preferível utilizar bicarbonato, com monitoramento dos níveis de sódio.

Quando adicionar ácido: antes ou depois do malte?

Sempre depois. Ajustar o pH da água antes de arriar o malte pode causar perda de atividade enzimática. O ideal é esperar 5 a 10 minutos após início da mostura.

Redução de alcalinidade por fervura

Método
  • Ferva a água por 15 minutos
  • Mexa ou aerar
  • Decante após esfriar
  • Separa o sobrenadante

Funciona bem para águas com bicarbonato e cálcio acima de 60 ppm. Ineficiente para magnésio e outros íons.

Mitos e verdades sobre sais

Cloreto de cálcio causa clorofenol?

Não. Clorofenol é causado por cloro livre ou cloraminas. O cloreto é um íon inofensivo, importante para corpo e maciez.

Excesso de cloreto afeta a carbonatação?

Não diretamente. O efeito é sensorial: o perfil “aveludado” da água rica em cloreto pode mascarar a sensação de gás.

Ácido ascórbico para remover cloro: cuidados

1 g de ácido ascórbico remove cloro de ~58 L de água com 5 ppm. Excesso pode reduzir o pH e afetar enzimas. Nunca use pastilhas de vitamina C — utilize ácido puro, grau alimentício ou analítico.

Cloreto de cálcio: anidro vs. dihidratado

Beersmith assume CaCl2 anidro. Se usar o dihidratado, aplique o fator de correção:

  • 1 g anidro ≈ 1,32 g de dihidratado
  • Massa molar anidro: 110 g/mol
  • Massa molar dihidratado: 147 g/mol

Lembre-se que o CaCl2 é higroscópico — sua massa pode variar com a umidade do ambiente.

Perda de minerais na mostura e fervura

Estudos mostram que até 88% dos íons metálicos podem ser retidos na cama de grãos. O zinco, por exemplo, deve ser adicionado no fermentador para garantir disponibilidade à levedura.

Conclusão: a espinha dorsal da sua cerveja

Como síntese, podemos dizer que este episódio defende e atesta que a água vai muito além da hidratação do mosto. É uma variável estratégica para aroma, corpo, fermentação e estabilidade da cerveja. Por isso, vale muito receber o máximo de atenção possível!

Se sua cerveja está aquém do esperado, talvez o segredo esteja não nos lúpulos, mas na torneira que jorra esse elemento abundante na produção, mas ainda um bocado negligenciado.

#274 – Brassando com Estilo: Specialty Spice Beer

Specialty Spice Beer

Como fazer uma Specialty Spice Beer: guia prático de técnicas e exemplos

O Brassagem Forte desta semana recebe Jocemar Gross, criador da Dude Brewing de Caxias do Sul, que compartilha sua experiência prática para falar de Specialty Spice Beer.

Jocemar atua dentro do complexo Beco do Dude, onde, além da cervejaria, funciona uma torrefação de café, o clube de assinatura, além do bar e restaurante da Dude. O braço Brewing, aliás, lança uma ou duas Specialty Spice Beers por mês, acumulando ampla experiência prática no estilo.

Não perca esse papo, que conta com a parceria da Lamas Brewshop, da Hops Company, da Levteck e da Cerveja Stannis!

O que é Specialty Spice Beer?

Segundo o BJCP, o estilo 33B Specialty Spice Beer é baseado na 30A (Spice, Herb, or Vegetable Beer) com adição de:

  • Açúcares fermentáveis (mel, açúcar mascavo, açúcar invertido, lactose)
  • Adjuntos alternativos
  • Cereais diversos
  • Processos especiais adicionais

É importante notar que os estilos 30B (Autumn Seasonal Beer) e 30C (Winter Seasonal Beer) já contemplam adições e não devem ser usados como base para a Specialty Spice Beer.

Diretrizes sensoriais para Specialty Spice Beer

Aroma

Segue a linha da 30A, mas ingredientes fermentáveis como mel ou melaço adicionam novos componentes. O aroma deve manter equilíbrio entre adjuntos e base.

Aparência

Definida conforme os ingredientes e processos empregados.

Sabor

O perfil de sabor é semelhante ao da 30A, com ajustes dependendo dos açúcares e especiarias:

  • Açúcares fermentáveis resultam em final mais seco.
  • Elementos não fermentáveis aumentam corpo e doçura.
Sensação de Boca

Varia amplamente: pode ser denso e licoroso ou leve, conforme a combinação.

Como escolher a base ideal

Perguntas-chave:

  • A especiaria será protagonista ou coadjuvante?
  • Quais notas sensoriais a base pode agregar?
Bases neutras (para protagonismo da especiaria)
  • American Blonde Ale
  • Witbier
  • Kölsch
Bases complexas (para diálogo com a especiaria)
  • Belgian Dubbel
  • Stout
  • Saison

Estratégias para adição de especiarias

Cada etapa tem sua peculiaridade

Mostura
  • Extração suave
  • Integração com notas de malte
  • Boa para especiarias robustas (ex.: canela)
Fervura
  • Extração intensa
  • Esterilização dos ingredientes
  • Ideal para gengibre e pimentas
Flame Out / Whirlpool
  • Melhor preservação de compostos aromáticos
  • Indicada para especiarias delicadas
Fermentação primária
  • Potencial de biotransformação sensorial
  • Alta necessidade de sanitização
Maturação (Dry Spice)
  • Ajustes finos de aroma e sabor
  • Maior controle sensorial
Ajustes pré-envase
  • Uso de extratos alcoólicos
  • Permite correções de última hora

Evitando oxidação e contaminação

Impactos da oxidação
  • Escurecimento da cerveja
  • Sabores indesejados, como papelão
  • Perda de frescor
Como minimizar
  • Extratos alcoólicos rápidos
  • Purga com CO₂
  • Manipulação rápida e fresca dos ingredientes

Procedência importa

Buscar fornecedores qualificados é essencial para garantir frescor e estabilidade! ✅

Exemplos e combinações práticas

Saison com pimenta-rosa, capim-limão e mel de laranjeira

  • Final seco e floral
  • Mel de laranjeira reforça secura

Belgian Dubbel com cardamomo, casca de laranja e candy sugar

  • Cardamomo harmonizando com ésteres
  • Candy Sugar escuro intensificando frutas secas

Receita prática: Imperial Stout “Red Velvet Chocolate Cake”

  • Estilo: Imperial Stout
  • Adjuntos: nibs de cacau, extrato de baunilha, suco de beterraba
  • Destaques:
    • Double mash para alta densidade
    • Carbonatação de 2.5 volumes para espuma vermelha
    • Maturar com nibs de cacau e ajustar com suco de beterraba

Livros para se aprofundar

Conclusão

Produzir uma Specialty Spice Beer de qualidade exige técnica, planejamento e sensibilidade. Definir o propósito da especiaria, testar aditivos sensorialmente e manter a base limpa e equilibrada são chaves para criar uma verdadeira experiência de aroma, sabor e história no copo!

E você, já se aventurou por esse estilo?

#273 – Análise da influência do terroir no lúpulo Comet

lúpulo Comet

Lúpulo Comet brasileiro: aualidade, desafios e oportunidades para o mercado cervejeiro

Introdução

O lúpulo brasileiro tem ganhado espaço e respeito entre cervejeiros e pesquisadores, especialmente com o crescimento do cultivo da variedade Comet. Para entender melhor esse cenário, o Brassagem Forte recebeu Raul Rosa, farmacêutico, bioquímico e cervejeiro caseiro desde 2011, que conduz pesquisas sobre lúpulo na Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP.

Neste episódio, Raul compartilhou detalhes técnicos e os bastidores de sua investigação sobre o desempenho do lúpulo Comet brasileiro e sua comparação com o de regiões produtoras dos Estados Unidos.

Não perca esse papo, que conta com a parceria da Lamas Brewshop, da Hops Company, da Levteck e da Cerveja Stannis!

A motivação por trás do estudo

Embora o foco do projeto de Raul Rosa não seja o terroir em si, a influência do ambiente, assim como a das práticas agronômicas, nas características químicas e sensoriais do lúpulo se tornou um componente central. A linha principal da pesquisa é a produção e caracterização de extratos de lúpulo, que competem com o lúpulo em pellet no uso comercial.

Por que o Comet?

A escolha pela variedade Comet teve três justificativas principais:

  1. Qualidade observada empiricamente por Raul em fazendas brasileiras.
  2. Dados da Aprolúpulo, que mostraram o Comet como a variedade mais plantada no Brasil em 2023 (34 hectares – 32% da área total).
  3. O Comet é uma variedade pública desenvolvida pela Oregon State University, facilitando o acesso e a colaboração com o laboratório do professor Thomas Shellhammer, referência mundial em ciência cervejeira.

Um comparativo entre Brasil e Estados Unidos

A proposta metodológica envolveu comparar amostras do Comet cultivado no Brasil com amostras das regiões de Yakima Valley (Washington) e Willamette Valley (Oregon). Essas áreas integram o chamado Pacific Northwest, região que concentra a maior parte da produção estadunidense de lúpulo.

Já as amostras brasileiras foram coletadas de quatro fazendas: Brava Terra, Boca da Mata, Terra Alta Lúpulo e Lúpulo Brasil.

Terroir brasileiro e fotoperíodo artificial

Como o Brasil tem baixa variação de fotoperíodo ao longo do ano, os produtores utilizam luz artificial com LEDs para simular os longos dias de verão das regiões temperadas e estimular o crescimento adequado do lúpulo. Esse fator tecnológico passou a compor uma característica única do terroir brasileiro de lúpulo.

No momento, estão em andamento pesquisas sobre o espectro de luz mais eficiente para esse tipo de cultivo.

Resultados promissores da pesquisa

Alta consistência nos teores de alfa-ácidos

O lúpulo Comet brasileiro apresentou teores estatisticamente superiores de alfa-ácido, com baixa variabilidade entre as amostras. Raul acredita que o momento de colheita — possivelmente tardio — pode ter favorecido esse acúmulo.

Ele também menciona uma tendência preocupante na Europa, onde mudanças climáticas têm reduzido o teor de alfa-ácido em variedades tradicionais, como o Saaz.

Mudanças climáticas e oportunidade para o Brasil

Com quebras de safra em regiões tradicionais, empresas do setor têm buscado diversificação geográfica. Isso representa uma oportunidade estratégica para os produtores brasileiros, principalmente considerando que o país importa cerca de 99% do lúpulo que consome, apesar de ser o terceiro maior produtor de cerveja do mundo.

O Comet e as lagers nacionais

Embora haja uma tendência em usar o Comet em IPAs brasileiras, Raul propõe seu uso como lúpulo de amargor em Lagers de grande escala. Ele argumenta que consolidar o uso do lúpulo nacional nas cervejas mais consumidas no país pode trazer impacto real para os produtores rurais.

Análise sensorial estruturada

Potenciais e desafios aromáticos

A análise sensorial foi conduzida com painel treinado, utilizando referências aromáticas para cada descritor. O lúpulo Comet brasileiro se mostrou tão cítrico e floral quanto os norte-americanos. Também apresentou notas resinosas e herbais marcantes.

Off-flavors e variabilidade

No entanto, as amostras brasileiras apresentaram de forma consistente o descritor onion/garlic (cebola e alho), potencialmente associado à colheita tardia. Um outro off-flavor identificado foi o pimentão, que, por sua vez, pode indicar colheita precoce. Esses dados sugerem uma falta de padronização no manejo entre as fazendas.

A pesquisa também identificou grande variabilidade entre as amostras brasileiras, inclusive com notas de tabaco e madeira em uma delas, demonstrando o potencial de complexidade do terroir nacional.

Aplicações práticas e usos do lúpulo nacional

Raul reforça que não basta ter bons resultados laboratoriais. O lúpulo precisa ser testado em cervejas reais para entender seu impacto sensorial. Ele recomenda aos cervejeiros que testem em lotes pequenos antes de grandes produções, especialmente se o objetivo for utilizar lúpulo nacional de forma consistente.

Cultura científica e colaborações internacionais

Um dos desafios enfrentados foi a dificuldade de coleta de amostras no Brasil. Raul destaca a baixa cultura de apoio à pesquisa por parte de produtores, em contraste com os EUA, onde entidades como o Hop Research Council são financiadas pelas próprias fazendas.

Durante sua estadia na Oregon State, Raul participou de outras pesquisas avançadas, como o impacto de incêndios florestais no lúpulo, uso de enzimas para rendimento de mosto e leveduras modificadas via CRISPR para aumentar a biotransformação aromática.

Método estatístico: como a análise foi conduzida

Na pesquisa de Rosa, foram utilizadas análises estatísticas como:

  • Análise de variância (ANOVA) para identificar diferenças significativas entre grupos.
  • Análise multivariada para cruzar dados químicos e sensoriais e entender suas correlações. Por exemplo, o descritor onion/garlic apareceu no mesmo quadrante estatístico dos altos teores de alfa-ácido e óleos essenciais.

Essas técnicas possibilitam visualização intuitiva das relações entre amostras e características sensoriais.

O futuro da pesquisa com lúpulo no Brasil

O próximo foco de Raul é concluir seu doutorado com a produção de extratos de lúpulo. No futuro, pretende expandir o estudo para outras variedades como a Cascade, também pública, muito plantada no Brasil.

Para isso, ele planeja incluir um agrônomo na equipe de pesquisadores, a fim de investigar os fatores agronômicos por trás da variabilidade observada, como tipo de solo, manejo e fertilização.

Conclusão: o Comet é só o começo

O estudo conduzido por Raul Rosa representa um marco para a pesquisa aplicada em lúpulo no Brasil. Com uma abordagem rigorosa e multidisciplinar, a análise mostrou que o lúpulo Comet cultivado em território nacional tem qualidade comparável — e em certos aspectos superior à dos produzidos em regiões tradicionais como Yakima e Willamette.

A consistência nos teores de alfa-ácido, a presença de óleos essenciais expressivos e o potencial sensorial revelam que o Brasil está no caminho certo. Com investimento, mais pesquisa e uso prático, o lúpulo brasileiro pode se consolidar como um insumo competitivo no cenário global.

Cabe agora ao mercado abraçar essa oportunidade: usar, testar, confiar e valorizar o que está sendo cultivado por aqui. O Comet é só o começo de uma nova era para o lúpulo nacional.

#272 – A Hora Ácida: envase de cervejas ácidas

A Hora Ácida - envase

Como envasar cervejas ácidas complexas com segurança: guia completo para caseiros e profissionais

Com a parceria da Lamas Brewshop, da Hops Company, da Levteck e da Cerveja Stannis, ao lado de Diego Simão Rzatki, da Cervejaria Cozalinda, você vai mergulhar de cabeça no mundo das cervejas ácidas e de fermentação mista.

Este episódio cobre tudo o que você precisa saber sobre envase de sour beers: escolha da garrafa, rolha, carbonatação, refermentação e como evitar erros críticos.

Quando é a hora certa de envasar uma cerveja ácida?

Fermentação finalizada: a atenuação como critério inegociável

O primeiro passo para garantir um envase seguro é certificar-se de que a cerveja terminou completamente a fermentação. Em sours complexas, isso significa atingir uma FG (final gravity) abaixo de 1.004, sendo o ideal abaixo de 1.002 ou até zero Plato.

A sensorialidade como bússola do cervejeiro

Além do critério técnico, a decisão de envase também depende da análise sensorial. Só a experiência permite prever como aquela cerveja flat se comportará após a carbonatação. O cervejeiro deve conhecer bem seu produto e o ponto ideal de evolução.

Estabilidade da FG e tempo de espera

Fermentações com múltiplos micro-organismos são lentas. A estabilidade de FG deve durar de dois a três meses, com densidade abaixo do limite de segurança. O uso de ingredientes como tapioca, da maneira que é empregada pela Cozalinda, por exemplo, pode ser estratégico, pois fornece substrato residual para a Brettanomyces atuar ao longo do tempo, prolongando a shelf-life, a durabilidade na prateleira.

Escolhendo a garrafa ideal para sour beers

Resistência à pressão

Evite garrafas comuns de ales e lagers. Prefira:

  • Garrafas de sidra (até 4 volumes de CO2)
  • Garrafas de espumante (até 6 volumes de CO2)

Volume e evolução sensorial

Quanto menor a garrafa, mais rápida a evolução sensorial. O mesmo rótulo pode expressar nuances diferentes em volumes de 375ml, 750ml e 1.500ml.

Cor da garrafa: verde, âmbar ou transparente?

A escolha da cor segue critérios de tradição (no caso das verdes) ou estéticos (garrafas transparentes, como a da Macacada). Desde que armazenadas corretamente, o risco de lightstruck é mínimo.

Tipos de fechamento e suas implicações

Tampas metálicas e badoques

  • Tampas de aço inoxidável são recomendadas por sua durabilidade e resistência à oxidação.
  • Badoques oferecem isolamento superior, mas requerem habilidade no fechamento e podem tornar a evolução da cerveja lenta demais.

Rolhas de cortiça e sintéticas

  • Rolhas naturais têm boa performance, mas variam em compactação e durabilidade.
  • Rolhas técnicas (como as usadas nos EUA) têm baixa permeabilidade, mas exigem arrolhadores industriais e podem deformar com equipamentos imprecisos.
  • Tratamentos com silicone alimentício facilitam a extração, mas devem ser usados em até 6 meses.

O temido THP: o que é e como evitar

THP (Tetra-Hidro-Piridina) é um off-flavor que lembra papelão molhado e surge da interação entre oxigênio, acidez e compostos da cerveja no momento do envase.

Como evitar?

  • Nunca use carbonatação forçada!
  • Faça uma refermentação vigorosa com 14g/L de priming, garantindo consumo do oxigênio residual.

Se aparecer, como resolver?

Deixe a cerveja na garrafa por mais tempo. A Brettanomyces consumirá o THP com o tempo.

Refermentação: adicionar levedura ou não?

O dilema da viabilidade microbiana

Cervejas envelhecidas por anos têm micro-organismos com baixa viabilidade.

Soluções recomendadas

  • Usar CBC-1 (Lallemand) ou Saccharomyces eubaianus (levedura de espumante)
  • Adicionar nutrientes específicos para refermentação
  • Fazer propagação adaptativa (ácido-choque) com suco de maçã e cerveja em proporções crescentes até a levedura estar adaptada

Tempo de refermentação estimado

  • 3 dias no verão
  • 7 dias em temperatura ambiente
  • 15 dias no inverno
  • Usando mosto complexo: até 6 meses

Armazenamento pós-envase: melhores práticas

  • Deite as garrafas por no mínimo 15 dias após o envase. Isso ajuda na formação de biofilme e hidratação da rolha.
  • Após esse período, podem ser colocadas em pé para envelhecimento prolongado.
  • Mantenha em local fresco, escuro e estável.

Conclusão: excelência no envase depende dos detalhes

Produzir e envasar uma cerveja ácida complexa com segurança e qualidade é um exercício de paciência, conhecimento técnico e consistência. Cada decisão — do blend ao tipo de rolha — afeta diretamente a estabilidade, o perfil sensorial e a longevidade do produto.

Como mostrou Diego Simão, o Brasil tem todas as condições de se tornar uma referência mundial em sours. Com mais cervejeiros estudando, testando e trocando experiências, esse futuro está cada vez mais próximo.